Por popularidade, Bolsonaro cogita até defender lockdown
Foto: Carolina Antunes/PR
Com reputação internacional de negacionista, Jair Bolsonaro desdenhou da gravidade da pandemia de Covid-19, sabotou as recomendações sanitárias destinadas a conter a transmissão do novo coronavírus e foi determinante para que o governo demorasse a comprar vacinas e imunizar a população. Essa postura, que contribuiu para recordes sucessivos no número de mortes no país, afetou a sua popularidade. Uma pesquisa do Datafolha revelou que 54% dos entrevistados consideram ruim ou péssima a atuação do presidente diante da pandemia, crescimento de 6 pontos porcentuais na comparação com o levantamento anterior, realizado em janeiro. Bolsonaro ainda é apontado como o principal responsável pelo caos na saúde pública, ficando à frente de governadores e prefeitos, a quem tenta, com frequência, transferir a culpa pelas agruras enfrentadas pela população. As sondagens sobre a sucessão de 2022 também captaram um baque na imagem do ex-capitão. Bolsonaro, que antes parecia caminhar para uma reeleição tranquila, enfrenta agora dificuldades nas simulações de segundo turno contra diferentes candidatos, como o ex-presidente Lula.
Tamanha corrosão levou a uma mudança de estratégia, cuja parte mais visível foi o anúncio da substituição do general Eduardo Pazuello pelo cardiologista Marcelo Queiroga no comando do Ministério da Saúde. O presidente, no entanto, está sendo aconselhado a fazer mais concessões. A mais ambiciosa delas, aventada pelo novo ministro, é defender um lockdown, algo que o mandatário sempre rejeitou, sob a alegação de que a nova cepa do vírus é mais contagiosa e letal. Se aceita, essa recomendação seria acompanhada, finalmente, de uma guinada também de retórica, na qual o reconhecimento da gravidade da doença substituiria expressões como “gripezinha”, “e daí” e coisas do tipo, que revelaram falta de empatia com as famílias das mais de 280 000 vítimas da Covid-19. Diz um ministro, que pediu para não ser identificado: “O Pazuello veio para preparar a estrutura e a logística. Isso já está resolvido. Essa mudança se deve à nova cepa. A gente está numa grande onda, muito maior que a primeira, do ano passado. Merece uma atenção especial. Cepa nova, ministro novo”.
Empenhados em lustrar a imagem de Bolsonaro, seus auxiliares também ressuscitaram o plano de convencê-lo a se vacinar — de preferência, diante das câmeras. Não será tarefa fácil. Do alto de seu desapreço pelo conhecimento científico, o presidente insiste em defender remédios sem eficácia comprovada e já insinuou que quem se vacinasse poderia ficar com a voz mais fina ou se transformar em jacaré. Seus assessores acham que a queda de popularidade pode operar o milagre da conversão à ciência. Se depender deles, o ex-capitão, que completará 66 anos em 21 de março, será imunizado pelo próprio Queiroga assim que chegar a vez do grupo prioritário do qual o presidente faz parte tomar a vacina. “Há cerca de cinco meses, fui infectado com a Covid-19 e, graças a Deus, tive poucos sintomas. Com a nova cepa, sei que posso me contaminar novamente. A vacinação é a melhor saída para este mal e é por isso que o governo está trabalhando dia e noite. Estou pronto para a vacina”, escreveu em seu Twitter o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. O general não teria coragem de publicar algo parecido algumas semanas atrás, sob risco de levar uma tremenda descompostura. A meta, diz-se no entorno do presidente, é encarar a corrida pela vacinação “na mesma velocidade que Usain Bolt”, atleta jamaicano que conquistou oito medalhas de ouro em Olimpíadas.
Enquanto Bolsonaro não declara apoio à quarentena nem toma a vacina, seus assessores trabalham com objetivos alternativos, como convencê-lo a reduzir o número de viagens pelo país e evitar solenidades com participação popular e aglomerações. O presidente ouviu de ministros e parlamentares aliados que um bom desempenho de Queiroga é vital para o sucesso e a popularidade do governo. Até a recuperação dos direitos políticos de Lula é usada como arma de convencimento no Palácio do Planalto. Dependendo da pesquisa, o petista aparece empatado ou à frente de Bolsonaro nas simulações sobre a próxima sucessão presidencial. “O presidente tem inteligência emocional, perspicácia e sabe o momento das mudanças que ele precisa fazer”, atesta o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR). Próceres do bolsonarismo alegam que a volta de Lula ao jogo eleitoral reduziu drasticamente a chance de criação de uma candidatura competitiva de centro. Se não reduziu, na melhor das hipóteses, dificultou mais.
Por essa análise, o governador João Doria (PSDB) e o apresentador Luciano Huck (sem partido) não terão chances reais de vitória caso disputem a Presidência. Doria declarou publicamente que não descarta concorrer à reeleição em São Paulo, mas não soou convincente. Já Huck recorreu a uma rede social para comentar a troca na Saúde e se fazer presente no debate político: “Pelo bem de todos, esperamos uma mudança radical e enfática da narrativa. Precisamos da ciência, do bom senso e de planejamento. O momento é dramático, crítico, não podemos seguir errando tanto”. A principal estratégia do presidente é manter até 2022 o apoio dos partidos do chamado Centrão, que costumam aderir, em tempos de eleição, ao candidato com mais possibilidade de vitória. “O Bolsonaro tem de se aproximar do centro para não demonstrar radicalismo. Três fatores vão definir a eleição em 2022: o auxílio emergencial seguido de um Bolsa Família melhorado, o tratamento da pandemia de agora até o fim do ano e a economia”, afirma o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira. Como se sabe, não basta a moderação apenas de retórica. Cargos, sempre eles, são importantes.
O Centrão reforçou a ofensiva destinada a tirar Ernesto Araújo do Itamaraty e quer emplacar no cargo o senador Antonio Anastasia (MG). A mudança poderia aproximar o partido dele, o PSD, ainda mais da base governista e, de quebra, afastá-lo de Lula. A legenda não é a única a habitar as preocupações presidenciais. Mais poderoso expoente do Centrão, o PP cobiçava o Ministério da Saúde, mas não levou. A indicação de Queiroga também provocou indignação no deputado Wellington Roberto, líder na Câmara do PL, partido comandado pelo notório Valdemar Costa Neto, condenado no processo do mensalão. Em uma dura conversa com o ministro Luiz Eduardo Ramos, Roberto ressaltou que a legenda, apesar de ter 42 deputados, não chefia nenhum ministério, enquanto o Republicanos, com 32 representantes na Câmara, controla a pasta da Cidadania, responsável pelo Bolsa Família e o auxílio emergencial. Em tempos de crise, o preço do apoio sempre aumenta. E o preço do PL, até aqui, não é barato. O partido tem, entre outros, uma secretaria do Ministério da Saúde, a presidência do Banco do Nordeste, uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e uma secretaria do Ministério do Turismo. Para acalmar o ânimo da sigla, o governo avisou que, mesmo com a troca na Saúde, o PL manterá sua secretaria na pasta. O presidente também estuda a possibilidade de refundar um ministério para abrigar a sigla e a turma de Valdemar Costa Neto, que têm uma relação de proximidade pública e notória com Lula.
Na segunda-feira 15, disposto a recuperar o capital político que perdeu por causa da pandemia, Bolsonaro nem parecia Bolsonaro. Antes de ser anunciado como ministro, Queiroga conversou pessoalmente com o presidente e seu filho Flávio, o principal padrinho da escolha. Tentando se equilibrar entre a ciência e a retórica da família presidencial, o cardiologista até defendeu a autonomia dos médicos para prescrever tratamentos, mas rechaçou o uso da cloroquina, que teve em Bolsonaro seu maior garoto-propaganda. Queiroga ainda enfatizou a urgência da vacinação, a importância do distanciamento social e do uso de máscaras e demonstrou preocupação com a baixa oferta de leitos em quase todos os estados do país. Chegou a dizer que, no caso extremo de não haver mais como abrigar novos pacientes em hospitais, uma medida como o lockdown seria a mais indicada. Em outros tempos, essas declarações fariam o presidente dispensar imediatamente o entrevistado, mas Bolsonaro ouviu sem fazer qualquer tipo de contestação e, depois da conversa, anunciou Queiroga como seu quarto ministro da Saúde. O presidente, ao que tudo indica, começou a ceder à razão depois que a morte de 280 000 brasileiros afetou a sua popularidade e a sua chance de reeleição.
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