Cientista política renomada defende decisão do STF sobre CPI da covid
Foto: Felipe Rau/Estadão
Ao contrário do que sustenta o presidente Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) “cumpriu seu papel” ao determinar a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do governo federal na pandemia. A avaliação é da cientista política e professora doutora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Tereza Sadek. Estudiosa do sistema de justiça, ela defendeu o papel da Corte na atual crise de enfrentamento da covid-19. Em entrevista ao Estadão, Maria Tereza lembra que o Supremo só age se for provocado, o que tem ocorrido com frequência por causa da atuação dissonante entre os Poderes, a União, Estados e municípios. “O Judiciário tem sido provocado porque o governo não tem respeitado as medidas demonstradas pela ciência.” Confira os principais trechos da entrevista.
Como a sra. avalia hoje a atuação do Judiciário na manutenção das garantias constitucionais e democráticas?
Vivemos hoje um clima de muita incerteza. Veja a liminar do ministro Kassio Nunes Marques sobre a realização de missas e cultos na pandemia. Sou capaz de apostar que, se não estivesse em jogo a aposentadoria do ministro Marco Aurélio (Mello), a discussão não teria tomado esse rumo. Muitas vezes é complicado entender a pauta e os argumentos se ficamos estritamente presos na letra da lei. Para analisar qualquer questão relativa ao Judiciário, Legislativo e Executivo, é preciso olhar o contexto geral.
Por que teria sido diferente?
Marco Aurélio vai se aposentar e temos vários candidatos ao posto. O presidente Jair Bolsonaro já falou que queria um ministro “terrivelmente evangélico” e os discursos no julgamento do Supremo (de André Mendonça, ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), e Augusto Aras, procurador-geral da República) foram assim. Me pareceu que tinha um recado.
A sra. falou que vivemos um clima de incerteza. O Judiciário tem contribuído com esse cenário?
O Judiciário é mais um ator nesse grau de instabilidade e incerteza que vivemos. Ele deveria ser um fator de previsão, pois trabalha com as leis e com a Constituição. Mas quando isso não ocorre, aumenta a instabilidade. Mas o Judiciário não é o único. Todos (os Poderes) estão contribuindo para esse cenário.
A insegurança jurídica se restringe ao STF ou está em todo o judiciário brasileiro?
É do primeiro ao último grau. A insegurança jurídica é a ideia de uma roleta. Ou seja, a decisão sobre uma mesma questão pode variar de juiz para juiz. E isso cria áreas de incerteza.
Como resolver essa questão?
O Judiciário tem mecanismos para tomar decisões mais previsíveis. Por exemplo, a utilização da súmula vinculante (interpretação pacífica ou majoritária adotada por um Tribunal a respeito de um tema específico), da reforma de 2004. A pergunta é: por que são tão poucas as súmulas vinculantes?
O ministro Luis Roberto Barroso invadiu as atribuições do Senado ao determinar a abertura da CPI da Covid-19?
O ministro cumpriu seu papel, assim como o STF, que só age provocado. Todos os requisitos constitucionais foram cumpridos para a instalação da CPI. Não houve “ativismo jurídico” nesse caso.
Mas a decisão tem desdobramentos políticos…
Sem dúvida. Mas aqui cabe uma definição básica que se aplica de forma geral: qualquer ação ou decisão que provoque consequências no ambiente social e político é política. Nesse sentido, a determinação de Barroso foi política, sim.
Os ministros Edson Fachin e Kassio Nunes Marques recentemente tomaram decisões monocráticas sobre temas de grande repercussão. As liminares não deveriam ser exceção?
Sim, deveriam. Quando o atual presidente da Corte assumiu (Luiz Fux) , disse que iria mudar essa estrutura, mas não conseguiu até agora. Acho que cada um age muito voltado para os interesses aos quais está sujeito. Quando um ministro ou juiz não quer que determinada questão seja discutida, ele engaveta. A questão da colegialidade vem sendo desrespeitada há muito tempo.
As decisões monocráticas têm levado a reviravoltas jurídicas no País. Qual a consequência desse cenário?
Aumenta a descrença na Justiça, pois a confiança na Justiça é um pilar básico de legitimidade.
O STF tem sido provocado a dirimir uma série de questões relacionadas à pandemia. Acredita que a Corte tem cumprido adequadamente seu papel?
Em algumas questões, me parece que sim. Sobre o direito à saúde, por exemplo, ele tem respondido, assim como a questão federativa. Mas você vive em uma situação tão pouco previsível que alguns obedecem e outros se acham no direito de não obedecer e, inclusive, contestar.
As decisões do STF na pandemia são uma resposta à falta de gestão do governo federal?
Isso é claro. Todas as deficiências por parte do Executivo acabaram nos braços do Judiciário. Se o governo tivesse dado prioridade à questão de resolver a saúde e minimizar os efeitos da pandemia, certamente não teriam tantos processos no Judiciário. O Judiciário só age por provocação. E ele tem sido provocado porque o governo não tem respeitado as medidas demonstradas pela ciência.
Essas decisões podem ser vistas como um ativismo jurídico do STF?
Toda vez que se fala em ativismo é como se a instituição estivesse extrapolando os limites. Nesse momento, de pandemia, acredito que não seja o caso. O Supremo tem sido muito provocado. Faço até uma associação: quanto maior o grau de negacionismo, maior a probabilidade de se entrar com questões a serem resolvidas no Judiciário. E ele tem que responder.
No dia 14 o plenário do STF deve decidir sobre a anulação das condenações proferidas pela 13ª Vara de Curitiba. Qual sua perspectiva sobre essa discussão?
Na situação atual não consigo fazer nenhum tipo de previsão. O que sabemos é que os ministros estão divididos. A decisão provocará consequências, algumas delas, inclusive, desconhecidas, já que poderão afetar outros processos.
Qual o impacto da Lava Jato no desempenho do Judiciário?
A Lava Jato, desde sua origem, provocou divisões entre os ministros. Distintos supostos e interpretações sustentaram diferentes decisões e, muitas vezes, tais posições foram expostas fora das sessões de julgamento. Não há como ignorar que todo o processo da Lava Jato provocou impactos, bastaria observar as profundas alterações na arena politico-partidária decorrentes da última decisão da 2ª turma do STF.
Era clara a divisão do tribunal antes da Lava Jato?
O tribunal, desde sua origem, nunca foi um colegiado marcado pela unanimidade, o que caracteriza os últimos tempos é o grau e a forma em que são explicitadas as divisões. Foram as questões criminais que provocaram esse grau de cisão. Ter divergência é absolutamente normal em um colegiado e em uma sociedade democrática, o que se supõe é que os embates ocorram obedecendo parâmetros de civilidade.
Quando o STF começou a ter uma atuação mais política? Tem a ver com a criação da TV Justiça?
Acredito que essa é uma variável importante, embora não seja a única. A constituição de 1988 responde em grande parte por essa possibilidade. No que se refere à TV justiça, faria duas observações: de um lado, aumentou o grau de transparência, o que é positivo, e os ministros tornaram-se mais conhecidos da população. Criou uma situação nova, como a de você estar na fila do ônibus ou do mercado e ouvir pessoas falando que tal ministro é bom ou ruim. Por outro lado, a TV alimentou um grau de exposição e competição entre ministros, e, segundo pesquisas, os votos ficaram mais longos.
O Supremo também tem sido palco de discursos inflamados – como o de Gilmar Mendes no julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Isso reforça a imagem de parcialidade da Corte?
Isso tem impactos na imagem da justiça, afetando sua legitimidade, discursos críticos ou elogiosos são sempre possíveis. O que é questionável é o tom e o grau. Afinal, o que está em jogo não é apenas o juiz, mas a instituição.
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