Bolsonaristas tentam viabilizar fake news nas redes em 2022
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
O governo federal e a tropa de choque bolsonarista na Câmara montaram uma ofensiva para se blindar contra suspensões de contas e remoções de conteúdo nas redes sociais para a campanha de 2022.
Além da minuta de um decreto presidencial que veio a público na semana passada, há 12 projetos de lei na Câmara –11 deles de deputados do PSL– que proíbem as redes sociais de suspenderem contas ou removerem ou rotularem conteúdo sem autorização judicial prévia, a não ser em situações específicas.
Os projetos de lei e o decreto foram inspirados em uma ordem executiva baixada pelo presidente Donald Trump em maio de 2020 e em uma lei anunciada pelo governo da Polônia em janeiro deste ano.
Na prática, tanto o decreto quanto os projetos de lei impedem plataformas como Facebook, Twitter, Instagram e YouTube de remover conteúdo que recomende medicamentos ineficazes contra Covid ou estimule aglomeração, e impossibilita suspensão de conta se algum político, por exemplo, incitar a população a invadir seções de votação para verificar se houve fraudes na urna eletrônica.
“Criando essas restrições à remoção de conteúdo e suspensão de contas, eles querem justamente impedir que aconteça com eles o que aconteceu com Donald Trump”, diz Caio Vieira Machado, diretor do Instituto Vero e Pesquisador da Universidade Oxford.
Trump foi banido do Twitter e suspenso por tempo indeterminado do Facebook e do YouTube por conclamar apoiadores a irem ao Capitólio questionar o resultado das eleições.
As plataformas consideraram que Trump violava regras de uso que proíbem incitação à violência e ameaçam a integridade cívica ou eleitoral. A invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro, deixou cinco mortos.
A minuta do decreto assinado pelo ministro do Turismo, Gilson Machado, e alguns dos projetos de lei preveem punições às empresas que violarem as novas regras que vão de advertências a multa de até 10% do faturamento do grupo no Brasil ou até a proibição de exercer as atividades no país.
Além disso, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual da Secretaria Especial de Cultura funcionaria como órgão de fiscalização das plataformas em relação a moderação de conteúdo.
Em entrevista ao canal bolsonarista Terça Livre, o secretário de Direitos Autorais, Felipe Carmona Cantera, afirmou que o decreto começou a ser discutido em janeiro, após Trump ser banido do Twitter e Facebook, e depois de “vários casos no Brasil”.
Cantera disse também que discutiu o tema com o embaixador da Polônia. “Tive uma reunião com o embaixador da Polônia, em fevereiro, foi muito produtivo, eles têm uma legislação muito eficaz (regulando retirada de conteúdo e perfis), quis fazer um benchmarking sobre como eles conseguem aplicar a lei.”
Segundo a agenda oficial, o secretário de Cultura, Mário Frias, reuniu-se duas vezes, em 8 e 23 de março, com o embaixador da Polônia no Brasil, Jakub Skiba, e Carmona participou da última reunião.
O governo polonês publicou em fevereiro uma legislação que impede as plataformas de bloquear usuários ou remover conteúdo que não viole a legislação do país e cria um Conselho de Liberdade de Expressão, para o qual usuários poderiam recorrer caso fossem bloqueados ou tivessem conteúdo removido.
Em caso de descumprimento, a legislação estabelece multas de até 10 milhões de euros. Segundo ministro da Justiça do país, a lei ajudaria a proteger usuários de “censura ideológica” e impedir remoção de conteúdo que simplesmente reflete visões diferentes.
Cantera, na entrevista ao canal bolsonarista, foi na mesma linha. Segundo ele, “a verdade é sempre o que eles [as plataformas] dizem que é verdade”.
“Aparentemente essa [censura das plataformas] não acontece com quem tem uma visão de mundo mais progressista”, afirmou. “Se eu tiver uma visão de mundo diferente dos demais e eu disser que a Terra é plana, eles vão tirar o conteúdo?”
O secretário rejeitou a ideia de que as plataformas são empresas privadas e, por isso, podem estabelecer suas regras. “Se eu sou dono de uma linha aérea e digo que não quero que anão entre (no avião), não posso fazer isso”, comparou.
Machado e Victor Durigan, coordenador de relações internacionais do Instituto Vero, apontam em relatório sobre o tema que “há um movimento coletivo por parte desses integrantes, que utilizam as redes sociais de forma intensa na disseminação de desinformação, para atacar uma ação cada vez mais recorrente por parte das plataformas, vista como uma ameaça para eles.”
Nos últimos meses, Bolsonaro e seus aliados tiveram diversas postagens removidas ou rotuladas por representarem desinformação médica sobre Covid-19 nas redes sociais.
Há exceções previstas no decreto e em alguns PLs que dispensariam as plataformas de obter autorização judicial para remover conteúdo, como posts que violem as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, nudez ou sexo explícito, atos de ameaça ou violência, e outros.
Nenhuma das exceções se refere à pandemia ou à saúde pública, integridade cívica ou eleitoral ou outras regras de comunidade das plataformas.
Muitos dos projetos de lei, de autoria de deputados como Bia Kicis (PSL/DF), Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL/SP), Carla Zambelli (PSL/SP), Caroline de Toni (PSL/SC), Daniel Silveira (PSL/RJ) e Carlos Jordy (PSL/RJ), foram apensados ao PL das Fake News, apresentado no ano passado.
No entanto um dos objetivos do PL das Fake News era obrigar as plataformas a serem mais ativas na moderação de conteúdo e, consequentemente, combater desinformação. Os novos PLs dizem o contrário, acusam as plataformas de moderar demais os conteúdos, e exercerem censura.
Os projetos de lei dos bolsonaristas começaram a ser apresentados após o então presidente Trump, em decreto de 28 de maio de 2020, determinar mudanças na Seção 230 do Ato de Decência nas Comunicações de 1996, legislação que permitiu o crescimento da internet nos EUA.
A seção 230 estabelece que as plataformas não podem ser responsabilizadas por conteúdo publicado por terceiros, uma vez que não são publicadores.
Além disso, a lei exime as empresas de responsabilidade civil por removerem ou restringirem conteúdo de seus serviços, caso ajam “de boa fé” e considerem que as postagens sejam “obscenas, lascivas, excessivamente violentas, representem assédio ou sejam condenáveis de alguma maneira”.
O decreto de Trump determinava que as plataformas que usassem suas regras de uso para remover conteúdo perderiam a imunidade a processos decorrentes de postagens de terceiros.
Ele acusava as empresas de abusar de seu poder sobre um meio de comunicação vital para “sufocar o debate livre e aberto e censurar certos pontos de vista”.
Trump havia acabado de ter postagens sobre “fraudes com votos pelo correio” rotuladas pelo Twitter. O decreto do republicano, que estava sendo questionado na Suprema Corte, foi revogado pelo presidente Joe Biden em 15 de maio deste ano.
Mas os trumpistas não desistiram. Nesta semana, o governador da Flórida, Ron de Santis, publicou uma lei que estabelece multas para redes sociais que suspenderem ou banirem candidatos que estejam concorrendo a cargos públicos.
Assim como a seção 230, o Marco Civil da Internet exime as plataformas de responsabilidade por postagens de terceiros.
E, na mesma linha que a ordem executiva de Trump, a justificativa do decreto afirma que “se o provedor não pode ser responsabilizado pelo conteúdo colocado em sua plataforma, não pode também retirar o conteúdo utilizando como justificativa os termos de uso.”
Em comunicado, a Associação Latino-Americana de Internet (ALAI) disse que o decreto é inconstitucional, porque cria direitos e impõe deveres que superam a lei federal que pretende regulamentar.
O entendimento é que o decreto não pode criar obrigações adicionais a uma lei –a minuta prevê a criação de sanções às plataformas, no âmbito do Marco Civil da Internet, lei de 2014 que regula o setor. Só outra lei poderia mudar isso.
De qualquer maneira, o deputado Aliel Machado (PSB-PR), presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, afirma que já preparou uma ação popular para questionar o decreto no Judiciário, caso ele seja publicado, e também um projeto de lei de suspensão de decreto.
“Vamos usar todos os instrumentos legais; a ideia do decreto e alguns dos projetos de lei não é defender a liberdade de expressão, é proibir a correção de distorções, é um retrocesso”, diz.
A própria Advocacia Geral da união (AGU) sugere, na análise que fez do decreto, que o presidente Bolsonaro use uma lei ordinária ou medida provisória para “afastar eventual questionamento judicial.”
Uma medida provisória teria que ser aprovada pelo Congresso. Mas entraria em vigor imediatamente após a publicação e valeria até ser apreciada pelo Congresso. No caso dos projetos de lei, não está claro qual seria o apetite do presidente da Câmara, Arthur Lira, para pautar os projetos.
Caso uma medida provisória, decreto ou legislação que proíba moderação prospere, as plataformas anteveem o caos em 2022.
Elas preveem que as inúmeras ações pedindo retirada de conteúdo iriam sobrecarregar o sistema judiciário e a demora em decisões judiciais impediria restringir circulação de conteúdo que pode causar danos à saúde pública ou violência.
“A minuta de texto, cria condições para a circulação online de conteúdo nocivo, notadamente discurso de ódio, bullying, incitação à violência, fraude, e abuso de gênero, entre outros conteúdos indesejados. E também criará condições para o financiamento de campanhas de desinformação”, diz a nota da ALAI.
No fim de abril de 2020, o Twitter apagou, pela primeira vez, duas postagens feitas pelo presidente. A empresa considerou que os conteúdos violavam as regras de uso ao potencialmente colocar as pessoas em maior risco de transmitir o coronavírus.
Os posts eram de vídeos do tour que o presidente fez no DF, contrariando seu próprio ministro da Saúde na época, Luiz Henrique Mandetta, que recomendou que as pessoas ficassem em casa como medida de enfrentamento ao coronavírus.
Nas filmagens, Bolsonaro cita o uso de cloroquina para o tratamento da doença e defende o fim do isolamento social.
Em um dos posts, em Taguatinga, ele conversa com trabalhadores informais, escuta críticas à quarentena, concorda com a cabeça, e diz que o medicamento está dando certo. No outro, em Sobradinho, o presidente entra em um açougue, fala com funcionários, projeta o desemprego que o isolamento social pode causar e, de novo, cita o remédio.
Um dia depois, Facebook e Instagram também excluíram o post com o vídeo do passeio.
Removemos conteúdo no Facebook e Instagram que viole nossos Padrões da Comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”, disse o Facebook em nota.
Em janeiro deste ano, post de Bolsonaro no Twitter sobre tratamento precoce foi marcado como “informação enganosa”