Bolsonaro gastou mais de R$ 100 milhões em remédios fajutos
Foto: Eurico Dantas 17-08-2009 / Agência O Globo
O Ministério da Saúde gastou mais de R$ 100 milhões para ampliar, durante a pandemia, a produção e distribuição de fosfato de oseltamivir, conhecido pelo nome comercial Tamiflu, após recomendar, em maio de 2020, que o medicamento fosse administrado em todos os quadros de síndrome respiratória grave (SRAG) ou de síndrome gripal com fatores de risco. A orientação foi revista em janeiro deste ano, mesmo mês em que, durante o colapso hospitalar em Manaus, a gestão de Eduardo Pazuello concentrou o envio de 425 mil comprimidos para o Amazonas, sendo mais da metade para a capital. A distribuição do Tamiflu, ineficaz contra a Covid-19, ocorreu sob pretexto de combate à gripe.
Especialistas afirmam que o Tamiflu costuma ser requisitado nas estações de aumento de casos de gripe, já que atua contra os vírus influenza A e B, incluindo o H1N1, cujo surto global em 2009 tornou o medicamento mais conhecido. Em 2020, segundo a plataforma Infogripe, da Fiocruz, houve 2,2 mil casos comprovados de influenza, uma queda de 67% em relação aos dois anos anteriores. De acordo com o boletim mais recente da Fiocruz, o índice corresponde a menos de 1% dos casos de SRAG naquele ano, enquanto 97,7% foram causados por Covid-19.
Ainda assim, o governo federal encomendou à Fiocruz e à farmacêutica Roche um total de 20,8 milhões de comprimidos de Tamiflu após o início da pandemia, e distribuiu quantidade semelhante a estados e municípios de janeiro a dezembro do ano passado.
A última distribuição para o Amazonas, feita no dia 12 de janeiro de 2021, em meio à fase mais crítica da falta de insumos hospitalares, quase igualou o total de comprimidos recebidos pelo estado em 2020. Na mesma data, foi assinado no Ministério da Saúde um parecer técnico que revogou a orientação “excepcional do uso do fosfato de oseltamivir durante a pandemia da Covid-19”, retomando o protocolo para influenza — este protocolo, de 2017, alerta para risco de “resistência viral” em caso de quimioprofilaxia, isto é, de medicação precoce sem um quadro que aponte para gripe.
Até fazer esta revisão, o governo orientava o uso de Tamiflu em todos os casos de síndrome respiratória grave, conforme o parecer técnico nº 67, publicado em 15 de maio de 2020. Cinco dias depois, na nota informativa nº 17, o oseltamivir apareceu no âmbito do chamado “tratamento precoce”, com recomendação de uso por até cinco dias “até exclusão de influenza”. A nota, que também orienta o uso de cloroquina e azitromicina, foi apagada do site da pasta na última semana.
Ao GLOBO, a prefeitura de Manaus informou ter solicitado 250 mil cápsulas de Tamiflu em janeiro seguindo as diretrizes do governo federal:
“O medicamento é utilizado em grávidas e em casos com indicações pelo Ministério da Saúde. A orientação é iniciar o Tamiflu antes mesmo de confirmação por meio de exame. Em Manaus, são muitas as ocorrências de síndromes respiratórias que estão em investigação. A nível de Atenção Primária, a indicação do MS é que seja iniciado o tratamento precoce com o Tamiflu”, disse a prefeitura. Já o governo do Amazonas, também em nota, disse que esperava um aumento dos casos de influenza no “inverno amazônico, com início em novembro até junho”.
Procurado, o Ministério da Saúde não retornou. Na justificativa do parecer sobre Tamiflu em maio passado, a pasta alegou que tentava uma “priorização do tratamento para determinados grupos” e se preocupava com a escassez do remédio, razão pela qual ordenou a retirada de farmácias públicas para concentrá-lo na rede hospitalar. Os dados mostram, no entanto, que não houve desaceleração da distribuição a nível nacional. O repasse para estados e municípios de julho a dezembro chegou a mais de 10 milhões de comprimidos, mesmo volume entregue de janeiro a junho de 2020. A distribuição em 2021 se encaminha a um nível semelhante, a despeito da baixa contaminação por influenza: de janeiro a meados de abril, foram entregues 4,2 milhões de cápsulas, ante 239 casos, segundo o Infogripe.
Levantamento do GLOBO no Diário Oficial da União aponta que, após o surto do H1N1 em 2009, as encomendas anuais de Tamiflu não chegaram a um terço do volume adquirido e distribuído em 2020. Em dezembro de 2016, o Ministério da Saúde chegou a pedir à Fiocruz que iniciasse a produção de 22 milhões de cápsulas, a um custo de R$ 64 milhões em valores da época. A distribuição dessas cápsulas, no entanto, foi diluída em mais de três anos. O último termo aditivo vigorou até junho de 2020.
Além dos 20,8 milhões de comprimidos encomendados na pandemia, sendo 5 milhões à Roche e o restante à Fiocruz, o estoque de Tamiflu para 2020 já contava com a previsão de 7,2 milhões de cápsulas produzidas no laboratório Farmanguinhos, conforme encomenda de 30 de dezembro de 2019. O valor desses contratos totaliza R$ 125,8 milhões. No total, 25 milhões de comprimidos já foram distribuídos.
Em nota, a Fiocruz informou que, por ter havido mais de uma solicitação de Tamiflu no ano passado, “foi necessário realizar duas aquisições distintas de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) usado na produção do medicamento”. Devido à variação cambial, o Ministério da Saúde pagou R$ 5 por cápsula na segunda encomenda, de 11 milhões de comprimidos, contra um valor unitário de R$ 4 por comprimido na primeira. A Fiocruz também informou que as encomendas de oseltamivir em larga escala “não afetam a fabricação dos demais medicamentos” produzidos em Farmanguinhos.
“É importante ressaltar que o medicamento é indicado para tratamento de Influenza A (H1N1) em adultos e crianças com idade superior a um ano de idade. (…) Os estudos publicados até o momento não foram capazes de gerar evidências científicas que comprovem a eficácia de fármacos no tratamento da Covid-19”, diz a nota da Fiocruz.
A presidente da sociedade de infectologia do Rio (Sierj), Tania Vergara, explica que o Tamiflu atua inibindo a neuraminidase, uma glicoproteína S (spike) do influenza responsável pela liberação e transmissão do vírus no organismo. Por conta disso, a maior eficácia ocorre quando é administrado nas primeiras 48h dos sintomas. Vergara avalia que o uso “pode até ser útil” antes de se estabelecer a causa de um problema respiratório, mas há risco de prejuízos à resposta imunológica futura.
— O uso da medicação de forma indiscriminada não é impune e está relacionada ao aparecimento de resistência — ressalta.
De acordo com o infectologista Alberto Chebabo, a ideia de incluir o Tamiflu nos protocolos de Covid-19 no início do ano passado se devia às semelhanças entre seus sintomas e os do influenza, além da incerteza à época sobre a disponibilidade de testes para confirmar a infecção por coronavírus.
— O Tamiflu só funciona contra o influenza, que teve uma circulação baixíssima em 2020 por consequência de medidas como uso de máscaras e distanciamento. Contra Covid, no sentido da eficácia, o resultado é o mesmo que tomar cloroquina ou ivermectina: nenhum.