Brasil recusa inspeções internacionais sobre a pandemia
Foto: Adriano Machado/Reuters
Diante de fracasso coletivo em frear a covid-19, da incapacidade dos mecanismos internacionais em identificar os riscos e da falta de transparência por parte de governos, países de todo o mundo concordaram nesta segunda-feira em lançar um processo para avaliar a criação de um novo tratado internacional que possa permitir uma cooperação real para lidar com futuras pandemias. Mas Brasil, EUA e Rússia deixaram claro os limites de tal proposta.
A ideia é de que, até o final do ano, uma cúpula seja organizada para iniciar a construção de uma nova estrutura internacional, transformando a maneira pela qual o mundo reagiria a uma pandemia. Modelos como os tratados sobre mudanças climáticas e o monitoramento de armas nucleares são considerados como opções a serem seguidas.
O acordo para o lançamento do processo foi fechado na OMS nesta segunda-feira, depois que investigações independentes revelaram que a crise sanitária poderia ter sido evitada e que a agência precisa passar por uma ampla reforma para poder lidar com uma eventual próxima pandemia. “Neste momento, os vírus estão ganhando. Mas precisamos reverter isso”, defendeu Mike Ryan, diretor de operações da OMS. “A mesma interconexão que nos fez vulnerável pode ser usada como nossa fortaleza”, disse.
As mesmas investigações admitem que governos não reagiram de forma adequada aos alertas da OMS e que terão de se submeter a novos compromissos.
Pelos próximos seis meses, governos irão avaliar de que forma um novo tratado pode ser estabelecido, criando obrigações aos governos e um novo papel para a OMS. “Temos de sair mais fortes desse processo e com uma OMS mais forte”, declarou a delegação dos EUA, no sábado.
Nos bastidores, porém, a negociação foi intensa nas últimas semanas. Os europeus propuseram lançar o processo ainda nesta semana. Mas americanos, russos e brasileiros, entre outros, conseguiram ganhar pelo menos até novembro. Além disso, o novo texto apenas cita obrigações para futuras pandemias, e não para a atual crise.
Entre os principais objetivos do pacto está um acordo permanente para garantir acesso às vacinas e tratamentos. A guerra por doses tem sido um dos aspectos mais críticos da resposta à pandemia, com a vacinação nos países ricos sendo 75 vezes a taxa de imunização nos países mais pobres.
Transparência e compromissos de governos em reagir à crise também estarão no tratado, além da troca automática de informação. De acordo com as investigações, o atual sistema é insuficiente e não permite o acesso aos dados de um surto num país.
Entre os debates, o novo tratado avaliará uma mudança no sistema de alerta. Um dos atrasos na declaração da emergência global, no final de janeiro de 2020, ocorreu devido a um sistema que, segundo as investigações, não permitia uma graduação no alerta.
Uma das propostas sob exame é a de se criar uma espécie de escala que consideraria o grau de risco de um surto. Assim, não haveria a necessidade de esperar até a eclosão de uma crise internacional para orientar governos a agir e se preparar para uma eventual epidemia.
Brasil apoia revisão, mas é contra dar à OMS autonomia total de investigação
O Brasil, ainda que tenha ficado de fora do lançamento da proposta em março, agora optou por aderir à iniciativa e é favorável ao processo em busca de um novo tratado internacional. O governo garante que vai se engajar nas negociações e quer a construção de mecanismos “eficientes” para lidar com futuras pandemias.
Mas Brasília também alertou que quer garantias de que o processo negociador permita um tempo suficiente para que haja consenso entre os países. Em outras palavras, o Brasil não aceitará que um modelo seja imposto.
Um dos pontos debatidos em Brasília é a consequência de um tratado que criaria obrigações a países no campo de controle de surtos e um monitoramento internacional.
Entre os pontos de potencial divergência está também o papel que deve ser dado para a OMS no futuro. Países europeus tinham a esperança de ver aprovada uma resolução também nesta semana que falasse abertamente na criação de equipes independentes e internacionais que poderiam ser enviadas para investigar surtos pelo mundo.
A proposta, porém, foi rejeitada pelos governos de China e Rússia. Nesse processo, o Brasil também indicou ser contrário à criação desse mecanismo independente.
O governo brasileiro não é contra o estabelecimento de equipes internacionais. Mas quer deixar claro que qualquer missão teria de receber o sinal verde do país envolvido, mantendo um certo grau de soberania.
Um dos temores do Brasil é de que, com pandemias e surtos tendendo a ocorrer cada vez mais em locais tropicais ou com contatos diretos entre ecossistemas e centros urbanos, países em desenvolvimento sejam os principais destinos de tais missões internacionais.
EUA e Rússia sugerem negociações longas
O Brasil não está sozinho em sua hesitação. Apesar de estarem em lados opostos em diversos temas, a Casa Branca e o Kremlin vêm adotando uma postura semelhante de cautela sobre o tratado.
O governo de Joe Biden acredita que o foco deve ser o de continuar a lutar contra a atual pandemia e que, apenas num segundo momento, é que uma nova estrutura deve ser criada.
Já os russos deixaram claro nos bastidores que não estão disposto a dar para a OMS mais poderes de monitoramento.
Ainda em março, Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, apontou que, da mesma forma que o mundo ergueu a ONU e reformulou o direito internacional depois do Holocausto, a comunidade internacional precisa agir agora para construir um novo pacto pós pandemia.
A OMS também deu sua chancela ao projeto que visa, acima de tudo, garantir que o mundo não tenha de passar pela mesma crise quando uma nova pandemia eclodir.
O objetivo da iniciativa é trabalhar “para um novo tratado internacional de preparação e resposta a pandemias” para construir uma arquitetura de saúde global mais robusta que protegerá as gerações futura.
“Haverá outras pandemias e outras grandes emergências de saúde. Nenhum governo ou agência multilateral pode enfrentar esta ameaça sozinho”, disseram líderes de 26 países que lançaram o projeto em março de 2021.
“Juntos, devemos estar melhor preparados para prever, prevenir, detectar, avaliar e responder efetivamente às pandemias de uma forma altamente coordenada”, alertaram.
De acordo com a proposta, o tratado “estaria enraizado na constituição da Organização Mundial da Saúde, atraindo outras organizações relevantes chave para este esforço, em apoio ao princípio da saúde para todos”.