Capitã Cloroquina cita estudo desprezado pela comunidade científica
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado (25.mai.2021)
O “estudo internacional” AndroCoV —mencionado na CPI da Covid pela secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro como base do aplicativo TrateCov— foi revisado a toque de caixa e ignorado pela academia após sua publicação em um periódico científico considerado medíocre.
Indicado para auxiliar profissionais de saúde na coleta de sintomas e sinais de pacientes contra a Covid-19, o TrateCov sugeria prescrição de drogas sem comprovação científica, como hidroxicloroquina e cloroquina, a partir de uma pontuação definida pelos sintomas do paciente após o diagnóstico do novo coronavírus.
O aplicativo veio à tona em janeiro —logo após a crise de saúde pública em Manaus. Foi retirado do ar no mesmo mês, depois de repercussão negativa na imprensa.
Nesta terça (25), o TrateCov foi um dos temas centrais no depoimento da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde.
De acordo com Mayra, os parâmetros utilizados pelo aplicativo são “do AndroCoV, um estudo internacional”. A afirmação se deu em resposta ao questionamento do senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, sobre as bases do aplicativo.
O tal AndroCoV é, na verdade, uma proposta de pontuação clínica para diagnóstico de Covid-19 publicada em artigo científico que levava seu nome (algo como “O escore clínico AndroCov para diagnóstico da Covid-19”, em tradução livre).
O trabalho foi feito por pesquisadores de São Paulo, Recife, Porto Alegre e Brasília, em parceria com cientistas dos EUA. Saiu no dia 7 de janeiro no periódico científico Cureus Journal of Medical Science, que concentra resultados de pesquisa em medicina geral.
Antes de sua publicação, o estudo foi revisado por outros cientistas em apenas um dia. Para se ter ideia do que isso significa, o processo de revisão de trabalhos acadêmicos pelos chamados pares (cientistas de mesma área acadêmica) pode levar até dois anos. E, ainda assim, o artigo pode ser negado para publicação.
Essa revisão é parte importante da qualidade dos trabalhos científicos. Todo resultado de pesquisa formal apresentado por cientistas passa por esse tipo de escrutínio de especialistas antes de ser publicado.
Os “pares” verificam a metodologia e os resultados expostos no artigo científico, refazem contas e, muitas vezes, voltam aos autores do estudo com questionamentos —que são respondidos ao longo de um tempo.
O AndroCoV, no entanto, teve sua revisão científica iniciada e concluída no dia 3 de janeiro.
Outro indicador importante de qualidade dos trabalhos científicos é o seu impacto acadêmico. Na prática, isso é medido pela quantidade de vezes que um artigo científico é mencionado por trabalhos científicos publicados posteriormente. Bons trabalhos são citados muitas vezes.
Um artigo científico que avaliou o uso de dexametasona em pacientes de Covid-19, por exemplo, publicado dia 25 de fevereiro no periódico New England and Journal of Medicine —bastante respeitado— somava 1.389 citações até esta terça.
Já o artigo científico sobre o AndroCoV —que, vale lembrar, saiu mais de um mês antes do estudo do New England — foi ignorado por outros cientistas: não foi mencionado em nenhum novo trabalho acadêmico.
Apesar de oficial, o periódico Cureus fica em uma espécie de puxadinho da base internacional Web of Science, que concentra revistas científicas de todo o mundo. Não faz parte, portanto, da coleção principal de periódicos científicos.
No Brasil, esses periódicos são categorizados em um sistema de qualificação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, ligada ao MEC) em uma escala de A1 até C. A Capes usa essa pontuação para avaliar programas de pós-graduação —os melhores publicam mais em periódicos A1 e A2 de sua área. O Cureus, no caso, está classificado no grupo C.
O periódico publicava cerca de mil artigos científicos em 2017 e chegou a 2.707 estudos em 2019. No ano passado, mais do que dobrou sua quantidade de estudos: foram 5.884 trabalhos publicados.
À CPI Mayra Pinheiro disse também que a ferramenta TrateCov, que se baseia no AndroCoV, “poderia ter salvado muitas vidas em auxílio aos testes diagnósticos”.
E segue: “poderia ter ajudado a secretaria estadual de Manaus, a secretaria municipal, a diagnosticar precocemente, como ferramenta de auxílio, e a gente proceder ao isolamento dos casos comprovados”.
A secretária também defendeu, na CPI, o uso de cloroquina para tratamento de Covid-19 —como tem feito durante a pandemia, o que lhe rendeu o apelido de “capitã cloroquina”. “Eu trouxe aqui e deixo à disposição dos senhores mais de 2,4 mil artigos impressos que referendam as metanálises hoje existentes no mundo, mostrando as evidências que todos nós queremos”, disse.
Essa é, na verdade, praticamente toda a quantidade de artigos científicos já publicados sobre cloroquina no âmbito da Covid-19 no mundo desde janeiro do ano passado.
Como a Folha mostrou recentemente, a cloroquina é, também, a mais testada em pesquisas com humanos para tratamento de Covid-19.
Desde janeiro do ano passado, há registro de 268 investigações com cloroquina para Covid-19 em 55 países, incluindo o Brasil. O consenso científico é de que a cloroquina não funciona para Covid-19 —e que pode piorar alguns quadros.