Guedes e o chefe acreditavam na tese da gripezinha

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Foto: Edu Andrade/ME

O Ministro da Economia, Paulo Guedes, manifestou à CPI que, em 2020, “não se vislumbrou a continuidade ou o recrudescimento da pandemia”. Registrou também que caberia aos ministérios setoriais solicitar o cadastramento de novos gastos para 2021 relacionados à covid-19. Essas foram as justificativas do Ministério da Economia, em resposta a requerimento da CPI sobre a não previsão de gastos ligados à pandemia no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021.

As afirmações constam de um conjunto de documentos analisados pelo Blog, encaminhados por Guedes ao Senado Federal, disponíveis no site da CPI, arquivados sob os números 121 e 122.

 

Figuras 1,2 e 3 – Nota Informativa SEI nº 13341/2021/ME. Resposta do Ministro da Economia, Paulo Guedes, ao Requerimento n 305 da CPI da Covid

Com isso, Guedes reiterou à CPI a negação da gravidade da epidemia no Brasil, posição que já integrava outros documentos oficiais do governo federal em 2020. No dia 31 de agosto do ano passado, na mesma data em que o Brasil já somava mais de 120 mil mortes por covid, tornando-se o segundo país mais afetado no mundo, depois dos Estados Unidos, a Mensagem do Presidente Jair Bolsonaro encaminhada ao Congresso Nacional, na proposta do orçamento da União de 2021, afirmava que “foi possível reduzir as medidas de isolamento social e o retorno gradual da atividade econômica”, e que “o vale da crise provocada pela pandemia provavelmente ficou para trás.”

Bolsonaro (“é uma gripezinha”) e Guedes (“com R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões ou R$ 5 bilhões, a gente aniquila o coronavírus”) ignoraram o potencial de duração da crise sanitária e deram por encerrado o período de medidas de saúde pública e de controle da transmissão do vírus que, na visão do governo, precisavam ser boicotadas ou paralisadas, pois reduziam drasticamente a atividade econômica.

Foi desenhado o roteiro de um simulacro da volta à normalidade econômica, expresso no orçamento de 2021, mesmo sem nenhuma perspectiva de o Brasil avançar na testagem, na cobertura vacinal, no alcance de imunidade coletiva, dentre outras metas já cumpridas por países que iniciaram a recuperação da economia.

Na toada de “fim da pandemia” foi encerrado o esforço para a elevação de despesas públicas para a saúde, que vinha do reconhecimento do estado de calamidade pública, decreto legislativo de março de 2020, cuja vigência encerrou-se em 31 de dezembro e que autorizava, com respaldo do STF, créditos extraordinários a serem usados pela Presidência da República.

O “orçamento de guerra”, aprovado por Emenda Constitucional em maio de 2020, que combinava receitas com despesas temporárias, também não foi prorrogado. Em tese, esse dispositivo permitiria, por exemplo, algum movimento em direção à redução de juros e a um ambiente fiscal mais favorável à adoção, por estados e municípios, de novos programas de proteção social e de enfrentamento da covid-19.

Na documentação entregue pelo Ministério da Economia à CPI, uma planilha detalha o destino de um total de R$ 86,5 bilhões previstos em créditos e emendas parlamentares para despesas já empenhadas, relacionadas ao combate à pandemia de covid-19. São, sobretudo, gastos com programas de recuperação econômica, por exemplo cerca de R$ 9 bilhões pagos no Auxílio Emergencial.

No caso do orçamento da saúde de 2021, o governo federal explica à CPI que, no lugar de recursos claramente destinados ao controle da Covid-19, optou-se pela continuidade do uso de créditos extraordinários para cobrir as despesas necessárias a combater a pandemia. Vem sendo ventilado, ainda, que a equipe econômica estuda uma proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permitiria o aumento dos gastos públicos neste ano, inclusive para a saúde.

Em 2020, o Ministério da Saúde deixou de usar R$ 21,5 bilhões disponíveis para comprar vacinas e conter a transmissão do coronavírus
Nas primeiras semanas da CPI, depuseram três ex-ministros da Saúde e o atual titular da pasta. As menções ao volume de recursos da União destinados à covid eram quase sempre acompanhadas da locução: “dinheiro não faltou”.

A ideia de abundância de recursos não para de pé. Basta combinar a manifestação de Paulo Guedes à CPI sobre a ausência de previsão orçamentária detalhada referente à covid-19, com um exame do orçamento excepcional alocado ao Ministério da Saúde, em 2020. Observa-se que a pasta da saúde recebeu relativamente um volume pequeno de recursos (10,5% do total do orçamento federal para o enfrentamento da covid-19). E, além disso, deixou de gastar cerca de 40% do valor disponível.

O montante do orçamento previsto para o Brasil enfrentar a pandemia, em 2020, foi de R$ 604,7 bilhões e, deste volume , R$ 63,9 bilhões eram destinados ao Ministério da Saúde para uso nas ações de prevenção, assistência e controle da covid-19, incluindo repasses a estados e municípios.

A liberação de recursos extras não demandava aprovação prévia do Legislativo e nem tinha compromisso com a meta fiscal e com o teto de gastos. Houve, ainda, permissão legal ao Ministério da Saúde para destinar, em ações relacionadas à covid-19, recursos que não tinham sido gastos no ano de 2019. A pandemia concedeu, assim, uma espécie de “carta branca” para que as despesas excepcionais fossem efetivadas tempestivamente.

Entretanto, o Ministério da Saúde não usou integralmente os recursos extraordinários existentes. Apesar da transferência de R$ 23,1 bilhões às prefeituras, de e R$ 8,9 bilhões aos Estados e Distrito Federal, o Ministério deixou de utilizar outros R$ 21,5 bilhões, que poderiam ter sido gastos em campanhas de prevenção, compras antecipadas de vacinas, testes de diagnóstico, equipamentos e ampliação de leitos clínicos e de UTI em hospitais do SUS.

Essa fatia de recursos, sob a rubrica orçamentária “aplicação direta”, se executada, permitiria a atuação do ente federal na melhor coordenação nacional da prevenção e da assistência relacionadas à covid-19 em 2020. O montante de R$ 21,5 bilhões foi, então, transferido de 2020 para 2021, e passou a ser contabilizado como despesas para a aquisição futura de vacinas.

Ao analisar as despesas do Ministério da Saúde referentes à covid, nem mesmo as instituições envolvidas com o combate à pandemia foram priorizadas. É o caso, por exemplo, da Fiocruz, destinatária de R$ 2,5 bi em 2020; da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), com R$ 757 milhões; e do Covax (fundo de vacinas da Organização Mundial da Saúde), que recebeu R$ 830 milhões.

Quanto à compra de vacinas em 2021, até agora, de janeiro a maio, foram gastos R$ 4,8 bilhões, dos recursos federais extras alocados ao Ministério da Saúde. Isso representa pouco mais de 20% do valor remanescente e não utilizado pela pasta da saúde em 2020.

Ou seja, houve postergação de cerca de 40% do orçamento disponível em 2020 e que, ao ser lançado para 2021 com o propósito de financiar a aquisição de vacinas, teve a mínima parte executada em cinco meses.

Corre-se o risco de repetir, em 2021, o que ocorreu em 2020. À previsão de gastos totalmente incompatível com a piora do quadro sanitário soma-se o possível mal uso dos recursos disponíveis.

Paulo Guedes, considerando o material que já enviou à CPI, decretou o fim da pandemia em seu gabinete, um grande equívoco que custou ao País milhares de vidas.

Por ironia, vem mais uma vez da ciência justamente o contrário do que Guedes queria dar a entender. Em 28 de abril de 2021, a revista The Lancet publicou um estudo, assinado por economistas e sanitaristas, demonstrando que, num grupo de 37 países, aqueles que foram mais rigorosos na adoção de medidas populacionais para controlar a covid-19 (como Austrália, Japão e Coreia do Sul) são os que melhores resultados exibem na diminuição da mortalidade, na retomada do crescimento econômico e na garantia das liberdades públicas.

Além da documentação recebida pela CPI, há requerimentos que pedem a convocação do Ministro da Economia. Ele terá a chance de explicar ao país porque fez tantas escolhas erradas.

As elevadas taxas de transmissão e de óbitos pela covid-19 no Brasil terminam por desidratar o potencial de medidas econômicas que visam superar o desemprego e a queda da renda.

Num país cujo governo desprezou as interações sociais de uma doença grave e letal, o que ficou para trás não foi só a saúde, mas também a economia que se buscava salvar. Em uma pandemia, as setas “mais economia” e “mais saúde” se invertem. É a melhoria da saúde que propicia o retorno das atividades econômicas.

A CPI pode requisitar da administração pública informações e documentos, além de inquirir testemunhas e ouvir suspeitos, tomar depoimentos de autoridades e convocar ministros de Estado. A partir do conteúdo de respostas a requerimentos da CPI ou de material apresentado nas audiências, o Blog se debruça sobre arquivos, dados e evidências que suscitem investigação.

Estadão