Lula pode liderar arranjo político como o português no Brasil
Foto: Reprodução/PT
Roberto Requião pertence ao MDB, o partido de Michel Temer. Michele Caputo, é do PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso. Arilson Chiorato, do PT, o partido de Lula da Silva. Goura Nataraj milita no PDT, o mesmo de Ciro Gomes. E Mabel Canto, no PSC, o partido conservador que chegou a abrigar Jair Bolsonaro. Eles e outros políticos do Paraná, um estado com mais de duas vezes a área de Portugal, reúnem-se desde março numa “frente ampla contra o governo e o fascismo e em defesa da vida e da democracia” a que deram o apelativo nome de “geringonça paranaense”, aludindo ao acordo de governo em Portugal.
O seu idealizador, Roberto Requião, disse que “é preciso derrotar o projeto de poder de Jair Bolsonaro, que respira morte, pobreza e o fim da soberania nacional”, em torno de “uma frente ampla criada a partir da sociedade civil”, pelo que seria necessário que os presidenciáveis de centro-esquerda e de esquerda “deixassem o ego de lado”.
As declarações surgiram durante uma entrevista a Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul e histórico quadro do PT, que desde janeiro vem promovendo uma série de entrevistas tendo a “geringonça portuguesa” como norte: falou com Ciro Gomes (candidato presidencial em 2018 pelo PDT), Fernando Haddad (substituto de Lula na mesma eleição), Guilherme Boulos (candidato a prefeito de São Paulo em 2020 pelo esquerdista PSOL), Flávio Dino (governador do Maranhão e presidenciável em 2022 pelo comunista PC do B), José Dirceu (histórico do PT) e Marina Silva (ex-candidata pelo Rede), entre outras figuras do centro e da esquerda.
“O objetivo é gerar um consenso entre as forças políticas, assim como ocorreu em Portugal, quando partidos se comprometeram a deixar de lado pontos sobre os quais não concordavam e resistiram ao projeto neoliberal que estava implantado”, disse Tarso Genro no início do projeto. “Isso inspirou-nos a criar uma resistência unitária ao fascismo que avança no Brasil”.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna defende o termo “geringonça” desde 2020, animado pelo repúdio geral a uma declaração do então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, a evocar o nazi Joseph Goebbels. “Procura-se uma geringonça brasileira – ou seja, uma versão do heterodoxo agrupamento de partidos, no caso de esquerda, que jamais haviam caminhado juntos, de repente se uniram e governam Portugal há cinco anos. Esse arranjo parecia improvável. Por que não podemos ter também um ajuntamento de forças similares, que não está posto no horizonte neste momento? Não sei se teremos capacidade para construir essa geringonça brasileira agora, de imediato, mas é sempre uma perspetiva interessante”.
Entretanto, no Rio de Janeiro, encontros entre líderes políticos ao longo de maio indicam a possibilidade, na prática, de alianças, à partida improváveis, para 2022 – ou seja, a possibilidade, na prática, de uma geringonça na segunda maior cidade e no terceiro estado mais populoso do Brasil. O PT cogita apoiar o prefeito Eduardo Paes, que deve transferir-se do DEM para o PSD, e patrocinar a candidatura ao governo do estado de Marcelo Freixo, em vias de trocar o PSOL pelo PSB. Com isso, Lula teria o apoio na corrida presidencial de PSD, de centro, e de PSB, de centro-esquerda, duas forças eleitoralmente poderosas com as quais o PT não contou em 2018.
O antigo presidente do Brasil, depois de recuperados os direitos políticos, pode, portanto, ser a figura que melhor venha a traduzir na eleição para presidente a “geringonça à brasileira”. Os sinais de aproximação, à medida que o candidato aumenta o avanço sobre Bolsonaro nas sondagens (55 a 32 numa eventual segunda volta, segundo o Instituto Datafolha, ou 55 a 28, de acordo com o centro de pesquisas Vox Populi) vêm de todos os lados.
Jean Wyllys, deputado do PSOL que foi obrigado a sair do país após ameaças na sequência da eleição do atual presidente, anunciou filiação ao PT. “Na esperança de reconstruir a democracia” e assente “numa estratégia contra o fascismo”. “Só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder, é hora de formar uma frente democrática, não de fragmentá-la”, concluiu.
Aloysio Nunes, barão do PSDB, ministro das Relações Exteriores de Michel Temer e candidato a vice-presidente de Aécio Neves contra Dilma Rousseff (e Temer…) em 2014, disse que “Lula tem de ser candidato” porque “é um líder importante e recuperou os direitos políticos”.
Mas o sinal mais impactante para a opinião pública chegou de Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula e líder espiritual do PSDB, a nemésis do PT na vida política brasileira por longos 20 anos. Depois de revelar ter votado “nulo” na eleição de 2018, afirmou escolher o candidato do PT num eventual, e previsível, duelo eleitoral com Bolsonaro, em 2022.
Dias depois, os dois mais longevos presidentes desde a redemocratização do país, em 1985, reencontraram-se (o último encontro fora aquando do falecimento de Marisa Letícia, mulher de Lula, em 2017) num almoço na casa de Nelson Jobim, ex-juiz do Supremo Tribunal Federal. “Com muita democracia no cardápio, os antigos presidentes tiveram uma longa conversa sobre o Brasil, sobre a nossa democracia e o descaso do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia”, resumiu a assessoria de imprensa de Lula nas redes sociais.
O encontro foi aplaudido pelo ator José de Abreu, um dos mais ativos apoiantes do PT. “Somos adversários políticos há décadas do PSDB, mas a “geringonça” pode funcionar, como em Portugal”, afirmou.
Causou, porém, desconforto no PSDB, nomeadamente em João Doria, governador de São Paulo e presidenciável pelo partido, e noutros pré-candidatos da chamada “terceira via”, como o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM), entre outros. Por isso, horas depois da divulgação do almoço, Cardoso sentiu necessidade de reafirmar pelo Twitter que defendia o lançamento de um nome do PSDB para as eleições do próximo ano, mas que, caso esse candidato não chegasse à segunda volta, apoiaria qualquer um contra Bolsonaro, incluindo Lula.
Dias depois, Fernando Haddad, ex-prefeito da cidade de São Paulo e segundo classificado em 2018, atrás de Bolsonaro, e Geraldo Alckmin, outro pilar do PSDB, governador do estado de São Paulo por 12 anos e duas vezes candidato presidencial, encontraram-se em clima amistoso numa live. “Não acho que a disputa PT e PSDB fosse ruim para o Brasil. Eram dois partidos muito bem organizados, cada um com a sua proposta, explicitadas a cada disputa, e não colocavam em risco a democracia”, afirmou Haddad, que pediu, ao contrário do que sucedeu em 2018, um compromisso “de segunda volta”.
“O compromisso de primeira volta é apresentarmo-nos de forma civilizada, o da segunda é com a democracia, as instituições, a dignidade humana, o respeito”, rematou.
Em 2018, o então candidato Haddad ficou magoado com a posição de neutralidade de Fernando Henrique Cardoso às vésperas do duelo entre si e Bolsonaro. E, mais ainda, com a recusa de Ciro Gomes, o terceiro mais votado, em fazer campanha alegando ir de “viagem para Paris”. Ciro, novamente candidato, ainda não falou sobre a geringonça em 2022.