Senado aprovará lei que facilita tortura no Brasil
Foto: Dida Sampaio/Estadão
O Senado aprovou ontem (18), o projeto de lei nº 1473 de 2021, autorizando a realização das audiências de custódia por videoconferência durante a pandemia. Se a lei passar na Câmara, o Brasil esvaziará um de seus principais instrumentos de combate à tortura, proteção e modernização do processo penal. São as audiências de custódia presenciais que permitem ao juiz, no contato visual com a pessoa presa, a identificação de maus-tratos, além da possibilidade de melhor avaliar se a detenção foi legal e se deve ser mantida. O encontro olho no olho também confere à defesa a oportunidade de se expressar com mais elementos e maior possibilidade de viabilizar à pessoa presa o seu exercício da autodefesa.
Por mais avançada – e cara – que seja, a tecnologia empregada na apresentação virtual do custodiado jamais será capaz de reproduzir na tela, sinais físicos e emocionais de violência e, de quebra, gerar um ambiente seguro para que denúncias possam emergir. É também do olho do magistrado – e não de dispositivos eletrônicos – a prerrogativa de coibir eventuais atos de intimidação ou coação de agentes de segurança pública contra a pessoa presa para demovê-la de relatar agressões. Lembramos ainda do papel do Ministério Público no controle dos atos policiais e na denúncia de eventuais delitos. Nesse sentido, a oportunidade de estar lado a lado com uma vítima de crime cometido pela polícia é essencial para levantar informações, cumprindo o dever constitucional do órgão.
Com relação à defesa, é de suma importância a proximidade com o custodiado para explicar a ele o que está acontecendo. Dados do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostram que, em São Paulo, pessoas que passaram por audiências de custódia sequer compreenderam o procedimento. Por vídeo, a tendência é que a comunicação fique ainda mais dificultada!
Com o resultado de ontem no Senado, o país, cujo presidente já se declarou “favorável à tortura”, assume o risco de retroceder ao avanço civilizatório tardiamente conquistado, em respeito ao artigo 7.5, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
O relatório do texto do PL nº 1473, da senadora Simone Tebet (MDB/MS), repete que a proibição das videoconferências tem se dado às custas dos direitos das pessoas presas, já que redundam, na prática, na suspensão das audiências de custódia. Contudo, a informação não procede, pois em nove estados (RJ, RR, AP, PA, MS, DF, GO, SE e ES), as audiências estavam ocorrendo presencialmente durante a pandemia, sem que tenham sido registrados surtos de Covid-19.
O compromisso com os direitos dos presos é reiterado em vários trechos do relatório, que cita também a extrapolação de prazos em prejuízo “daqueles que se quer proteger”. Ora, a mesma preocupação das autoridades (e aí incluímos também as do judiciário) jamais se expressou quanto ao enorme risco à vida representado pela pandemia nas prisões. Ali, sociedade e autoridades desconhecem o que se passa, porque dados sobre mortes e contágio têm a marca da subnotificação ou inexistem.
As informações disponíveis revelam um mundo em que a violação é regra. No primeiro ano de pandemia, somente seis estados (AL, CE, DF, MS, MG e SP) informaram fornecer água potável em tempo integral em suas unidades prisionais. Os presos brasileiros podem ter passado o ano de 2020, em média, 21h em espaços que, também em média, têm 18 pessoas onde cabem 10. Para completar, cinco estados (AP, AM, GO, RJ e SC) afirmaram que não houve distribuição universal de máscaras entre detentos e trabalhadores do sistema penitenciário.
Esses números levantados pelo IDDD escancaram o contraste entre a preocupação com os direitos dos presos demonstrada pelos legisladores ao lidar com o tema da audiência de custódia por videoconferência e a realidade de anomia da crise sanitária nas prisões. Portanto, não é a presença física nas audiências de custódia – única forma de detecção da tortura – que tem elevado riscos aos direitos dos presos. A falta dela, sim, empurrará as denúncias de tratamento cruel e degradante para invisibilidade, já que câmeras nem tudo captam.
* Flávia Rahal, advogada e presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado e vice-presidente do Conselho Deliberativo do IDDD; Marcelo Leonardo, advogado e conselheiro do IDDD; Hugo Leonardo advogado e presidente do IDDD; e Clarissa Borges, assessora de advocacy do IDDD.