Advogados rejeitam cotas raciais e de gênero para gerir escritórios de advocacia
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A maioria da advocacia brasileira se disse contrária à criação de cotas raciais e de gênero para ocupação de cargos de liderança em escritórios. O apoio a cotas raciais foi maior, com 40% dos profissionais favoráveis à medida e 58% contrários à implementação da regra nas bancas jurídicas, segundo pesquisa inédita do Datafolha sobre o perfil e as opiniões da classe.
Já em relação a cotas de gênero, 61% dos entrevistados manifestaram oposição à reserva de vagas para mulheres na direção dos escritórios e 36% disseram concordar com a adoção do mecanismo.
O levantamento mostra que entre as pessoas negras e mulheres há maior apoio às medidas, mas também nesses segmentos o percentual da advocacia com posição contrária à implementação do sistema foi superior ao dos favoráveis.
Os índices dos que disseram não saber e dos indiferentes somam 2% no caso das cotas raciais e 4% no das cotas de gênero.
A margem de erro da pesquisa é de seis pontos percentuais para mais ou para menos. Realizado por telefone entre os dias 26 de fevereiro e 8 de março, o levantamento do Datafolha ouviu 303 advogados, das cinco regiões do país.
Esta é a quinta de uma série de reportagens da Folha para apresentar e discutir os dados da pesquisa. O trabalho do Datafolha foi encomendado no âmbito da FolhaJus, iniciativa do jornal voltada para os assuntos do mundo jurídico, e teve apoio da empresa Digesto e da AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs).
A advogada especializada na área de saúde Elysangela Rabelo Maurer, 46, trabalhou por duas décadas em um grande escritório em São Paulo antes de iniciar sua própria banca e entende que ainda não é momento de criar o sistema nas firmas jurídicas.
Segundo Elysangela, as cotas são positivas, mas o mundo jurídico ainda não oferece o ambiente adequado para que sejam implementadas.
“O papel da advogada ou do advogado que assumir uma posição de liderança precisa ser validado, precisa ser reconhecido. Há toda uma trajetória que precisa ser percorrida.”
“A cota numa posição de liderança pode ser muito perigosa para o indivíduo em razão do desconforto que aquela posição pode gerar, justamente porque ela foi galgada de uma forma não validada pelo restante do grupo”, diz.
Já o advogado Paulo Petri, 42, de Porto Alegre, é favorável a ações afirmativas que busquem resgatar grupos ou segmentos discriminados. Ele entende que o estabelecimento de cotas para liderança em escritórios pode ser uma dessas ações.
Para Petri, a resistência a este tipo de medida na advocacia é uma reprodução da lógica que se vê na sociedade como um todo. “Nós vivemos numa sociedade onde existe um racismo estrutural e o machismo. Então, não é que o elemento central seja a ideia do mérito, da meritocracia”, afirma.
“O escudo pode ser essa discussão da meritocracia. A forma de proteção —de quem tem esse tipo de resistência— pode ser essa, assim como na universidade diziam que ia cair o desempenho, que as pessoas [cotistas] não iam conseguir ter o mesmo desempenho dos não cotistas e isso se provou um argumento inválido”, completa.
Dividindo os resultados do Datafolha por grupos, enquanto entre pessoas brancas o índice de desaprovação às cotas raciais é de 62%, no universo das pessoas negras a divisão sobre o tema foi maior, com diferença dentro da margem de erro: o levantamento mostra que 51% das pessoas negras não concordam com a medida, e 48% defendem a adoção da cota na cúpula das bancas jurídicas.
O segmento que mais apresentou variação foi aquele relativo à posição política dos entrevistados.
Entre os que se autodeclaram de esquerda, houve inclusive uma inversão em relação ao resultado geral da advocacia, já que no contingente específico a aprovação à fixação da cota atingiu 62%, e a desaprovação ficou em 38%.
Já no âmbito dos que se posicionam à direita no espectro político, o índice de contrariedade à regra chegou a um dos valores mais altos da pesquisa, no patamar de 85%.
Pela faixa etária, entre aqueles que têm de 18 a 34 anos, o apoio à cota foi de 53%, ante 46% que a desaprovam. Esse foi o único grupo etário no qual os entrevistados favoráveis à medida formaram uma maioria. No segmento daqueles com 45 anos ou mais, 72% manifestaram contrariedade à adoção do sistema.
Por regiões do país, entre os moradores do Nordeste houve empate, com 50% para cada lado. No Sul, o percentual dos opositores à fixação de cotas atingiu 68%.
Em relação aos grandes escritórios, a falta de equidade racial ocorre não só nas posições de liderança, mas também é constatada nos escalões inferiores das bancas jurídicas.
Censo realizado pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) em nove dos maiores escritórios do país, em 2018, mostrou que advogados e advogadas negras não chegavam a perfazer 1% dos quadros dessas bancas. Apenas entre estagiários o número aumentava, chegando a 9,4%.
A Rede Brasil do Pacto Global da ONU, iniciativa da qual o Ceert é parceiro, estabeleceu em 2021 como uma de suas prioridades a equidade racial, especialmente em cargos de liderança.
Conforme apontou pesquisa do Instituto Ethos de 2016, nas 500 maiores empresas do país as pessoas negras ocupavam apenas 4,7% dos cargos de liderança.
De acordo com Daniel Teixeira, diretor-executivo do Ceert, quando se discute políticas de equidade racial, é necessário que haja um trabalho voltado à mudança na cultura dos escritórios e é preciso que as políticas tenham “uma efetividade prática que precisa ser consistente e cada vez mais ousada, especialmente quando a gente pensa em alta liderança”.
Elizabete Scheibmayer, especialista em diversidade e sócia-fundadora da Uzoma Consultoria Educação e Cultura, considera o compromisso dos próprios sócios como um fator fundamental para se chegar à equidade na advocacia.
“É o escritório se posicionar, entender que ele precisa mudar esse cenário, seja por questão de pressão de clientes, seja porque ele entende que esse é o certo a fazer, mas ele precisa mudar essa forma de agir.”
Quanto à criação de cotas para mulheres nas posições de liderança nos escritórios, o recorte do Datafolha por grupos mostra que mesmo no universo das advogadas a maioria desaprova a regra.
Entre as mulheres entrevistadas, 56% disseram ser contra a implementação do mecanismo, e 41% responderam que têm posição a favor. No segmento dos homens, a oposição à cota atingiu 66%, ante 31% de aprovação.
A exemplo do que ocorre no caso das cotas raciais, os percentuais mais próximos dos extremos são registrados quando a separação se dá pelo posicionamento político dos entrevistados.
Na parcela da advocacia autodeclarada de esquerda, o resultado destoa do índice geral, pois neste grupo a concordância com o regime de cotas de gênero na liderança de escritórios supera a desaprovação (56% a 39%).
Porém, entre os entrevistados que se colocaram no campo da direita, há altíssima oposição à medida, no patamar de 88%, com apenas 8% de adesão.
Considerando a faixa etária, apenas no grupo dos mais jovens, entre 18 e 34 anos, a pesquisa mostra uma apertada vantagem numérica pela aprovação das cotas (50% a 49%), o que estatisticamente configura um empate técnico.
A professora de direito da Universidade Mackenzie Patricia Bertolin pesquisou a ascensão feminina na advocacia, em 2014, por meio de entrevistas.
Para ela, o resultado majoritário contra a política de cotas não é uma novidade. “Uma coisa que apareceu direto foi o discurso da meritocracia, inclusive incorporado por muitas mulheres. Aquele discurso de ‘se eu consegui, outras também conseguem’”.
De acordo com a pesquisadora, ainda que não fosse em sua totalidade, a maioria das advogadas que entrevistou e que tinham ascendido na carreira costumava ignorar sacrifícios relacionados à vida familiar que tiveram que fazer para alcançar o cargo que ocupavam.
Dos dez grandes escritórios que integraram o escopo de sua pesquisa, Bertolin identificou, em oito, o fenômeno do teto de vidro, em que as mulheres eram maioria na base, mas iam desaparecendo em posições no topo da carreira.
Segundo o anuário jurídico Análise Advocacia, que envolve centenas de escritórios de todo país, a média de mulheres sócias dos escritórios ranqueados pela publicação manteve-se, desde 2006, em 28% e, apenas em 2020 apresentou ligeiro aumento, chegando a 30%.
Já entre os advogados associados, que estão nos escalões inferiores, há maioria de mulheres desde 2009.
A advogada Rossana Fonseca, 51, que é vice-presidente da OAB do Rio Grande do Norte, não é favorável ao estabelecimento de cotas nos escritórios, mas diz que as firmas devem fixar metas para estimular o crescimento das minorias. “Uma forma de você tentar garantir um mínimo é criar uma política específica de RH [recursos humanos] para atingir essa meta.”