Antes de sair, decano do STF critica atuação de Bolsonaro na pandemia
Foto: Dida Sampaio / Estadão
O ministro Marco Aurélio Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), disse nesta segunda-feira, 21, que mesmo após mais de um ano de pandemia ainda falta coordenação do governo federal na gestão da crise do coronavírus.
“Essa coordenação, pela postura incialmente adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, é que ainda não há de forma concreta, já que ele negou que estivéssemos diante de uma pandemia. E com nefastos efeitos: hoje estamos com mais de 500 mil mortos”, disse em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura.
O decano também criticou o ritmo de vacinação da população e afirmou que o País poderia estar em posição melhor se o Planalto tivesse demonstrado ‘cuidado inicial’ sobre a doença. “Evidentemente quando o presidente negou a existência da pandemia, nós ficamos a reboque, inclusive quanto à aquisição de vacinas”, afirmou.
Ainda sobre a gestão da pandemia, o ministro disse que a conduta do governo federal gera ‘insegurança’. “Basta percebermos quantos ministros da Saúde já passaram nesse governo”, comentou. Desde o início da pandemia, o comando da pasta passou pelas mãos de quatro ministros – Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich, Eduardo Pazuello e o atual chefe do Ministério, Marcelo Queiroga.
Durante a entrevista, Marco Aurélio também rebateu as declarações reiteradas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que culpou o STF pela ausência de atuação direta do governo federal no combate à pandemia da covid-19 em Estados e municípios. O plenário do tribunal deu autonomia a governadores e prefeitos para, levando em conta o contexto local, determinarem medidas de isolamento social e enfrentamento ao novo coronavírus.
“Existe um condomínio no trato da Saúde. Esse condomínio é formado pela União, pelos Estados, Distrito Federal e municípios. Segundo que a União e os Estados podem legislar em matéria de Saúde”, explicou.
Questionado sobre eventuais crimes comuns ou de responsabilidade que podem ter sido cometidos por Bolsonaro na gestão da pandemia, objeto da CPI da Covid, Marco Aurélio disse que é ‘muito cedo’ para fazer uma avaliação.
“Eu penso que nós precisamos aguardar e precisamos marchar com absoluta segurança. Os brasileiros escolheram esse presidente, ele ocupa a cadeira”, respondeu. “A repercussão dos atos, havendo iniciativa, poderá ser apurada de forma mais profunda, quer quanto aos processo político, que é impedimento nas Casas Legislativas, quer quanto ao crimes comum no Supremo Tribunal Federal. Mas é cedo, é muito cedo para nós pensarmos nisso”, acrescentou.
O decano também defendeu a regularidade da decisão do tribunal que, ao confirmar uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso, determinou a instauração da comissão parlamentar no Senado Federal para apurar possíveis omissão do governo federal na pandemia.
“Havia um requerimento para instauração da CPI. E requerimento formalizado não pela maioria, pela minora, e geralmente CPI é instrumento da minora. E esse requerimento tinha sido engavetado. Então o Supremo bateu o martelo, provocado”, explicou.
Marco Aurélio também repreendeu os ataques dirigidos por Bolsonaro a jornalistas. Mais cedo, em agenda em Guaratinguetá (SP), o presidente mandou uma repórter calar a boca e disse ser alvo de ‘canalhas’.
“A liberdade de expressão é a medula da democracia. Evidentemente, precisamos de uma imprensa que elogie e também critique. A crítica construtiva é bem-vinda e tem que ser percebida assim por todos os homens públicos”, afirmou. “Há de se dar um desconto, evidentemente, e aguardar que o presidente perceba o papel importantíssimo dos veículos de comunicação, dos jornalistas em si, no que eles têm o dever-direito de informar o grande público”, prosseguiu.
O ministro disse que, a despeito dos arroubos do presidente e de seus apoiadores contra os Poderes, as instituições funcionam ‘normalmente’.
“É um período episódio. É um estilo um pouco ou muito agressivo, para alguns. É ruim em termos de sociedade, em termos de avanço cultural, porque nós aprendemos desde cedo que o exemplo vem de cima. E se deveria ter esse exemplo do próprio poder central, do próprio presidente Jair Bolsonaro. Agora, repito, ele foi eleito com 47 milhões de votos, tem um mandato de quatro anos e deve cumprir esse mandato”, comentou.
Com aposentadoria marcada para o início de julho, após 31 anos ocupando a cadeira de ministro do STF, Marco Aurélio disse esperar que o sucessor indicado por Bolsonaro faça jus ao cargo. Ele atribuiu as declarações do presidente, que afirmou em diferentes ocasiões pretender indicar um nome ‘terrivelmente evangélico’ para a vaga, a um ‘arroubo de retórica’.
“Que o candidato escolhido pelo presidente tenha realmente ilíada conduta e domínio técnico suficiente a colocar a capa de ministro do Supremo sobre os ombros. A problemática quanto a religião, se será um católico ou evangélico, tem importância menor”, disse.
Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 1996, quando a urna eletrônica foi implantada, Marco Aurélio minimizou as dúvidas levantadas sobre o sistema eletrônico de votação e lembrou o equipamento é auditável.
“De lá para cá nós não tivemos, ao contrário do que ocorria no sistema anterior, uma única impugnação minimamente séria, procedente, quanto à fidelidade do voto depositado na urna eletrônica pelo eleitor”, afirmou. “Agora surge uma ironia: o presidente reclama de um sistema que viabilizou a eleição dele. Alguma coisa aí está errada. O presidente está em uma visão prognóstica quanto a 2022?”, questionou.
No programa, o decano também voltou a criticar o chamado inquérito das fake news, aberto de ofício em abril de 2019 pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, com base no regimento interno do tribunal para apurar ofensas, ameaças e notícias falsas contra os ministros. “Não concebo a própria vítima provocando a instauração do inquérito e foi o que ocorreu”, disse. “Isso, evidentemente, não se coaduna com o Direito positivo, com a Constituição Federal, com os ares democráticos”, acrescentou.
Marco Aurélio voltou a se referir à investigação como ‘inquérito do fim do mundo’ e disse que, após de mais de um ano, não há sinal de oferecimento de denúncia. “Esse inquérito começou mal, começou com o abandono absoluto da legislação instrumental, da organicidade do Direito”, comentou.
Em outra crítica aos colegas, repetiu ter ficado ‘perplexo’ com a decisão do colega Edson Fachin, referendada no plenário, de anular os processos e condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Operação Lava Jato por ver incompetência do juízo de Curitiba para processar e julgar as ações penais.
“Incompetência territorial é relativa, não é absoluta”, defendeu. “Toda vez que se tem uma reviravolta desse alcance, se provada o descrédito, o descrédito no Judiciário, e o desgaste para o Judiciário como um grande todo, não me refiro apenas ao Supremo, é muito grande, não é o desejável. O processo é uma marcha e uma marcha direcionada em si ao julgamento final”, completou.
No centro da roda, Marco Aurélio também saiu em defesa de uma ‘reforma profunda’ para enxugar a competência do STF – que, em sua avaliação, é ‘muito elástica’.