Brasil joga fora energia que não tem
Foto: Tarso Sarraf/Folhapress
O apagão de aproximadamente 20 minutos que atingiu diversos estados na última sexta-feira (28) está relacionado a um problema maior no sistema elétrico brasileiro: a dificuldade de transmitir energia entre as regiões.
Mesmo com a seca que afeta principalmente o abastecimento de Sul e Sudeste, o Brasil eventualmente ordena que usinas no Norte e Nordeste parem de produzir eletricidade. Quando isso acontece, usinas hidrelétricas expulsam água sem passar pelas turbinas, eólicas (vento) giram suas pás em vão, enquanto o consumidor paga por energia importada de vizinhos ou gerada por térmicas que precisam ser acionadas.
O motivo do desperdício é a deficiência na capacidade de transmitir a energia de uma região que está com eletricidade sobrando para outra que está com déficit.
A chamada “limitação de intercâmbio” é um problema comum em países com dimensões continentais, mas que poderia ser minimizado com mais investimento e planejamento, segundo especialistas.
No Brasil, o atraso na instalação de linhas de transmissão piora a situação.
O apagão de sexta-feira aconteceu após uma falha na linha que leva eletricidade produzida na usina Belo Monte, no Pará, ao Sudeste e Centro-Oeste. O caso mostra como a distribuição entre regiões é vital para o abastecimento nacional.
No mesmo dia, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) anunciou que a conta de luz ficará mais cara a partir de junho. A medida repassa ao consumidor o custo do acionamento de usinas térmicas e da importação de eletricidade.
Ainda na sexta-feira, o governo publicou um alerta de emergência hídrica (seca) em cinco estados do Sul e do Sudeste. A falta de chuva que afeta essas regiões desde o ano passado fez despencar o nível dos reservatórios, e deverá haver mais controle sobre a vazão das barragens para evitar um apagão pior.
Com exceção de Roraima, todos os estados são conectados pelo SIN (Sistema Interligado Nacional). A rede é dividida em quatro subsistemas (ou submercados): Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e Norte.
A classificação é diferente da divisão regional geográfica —o Maranhão está no subsistema Norte; Acre e Rondônia ficam no subsistema SE/CO.
O SE/CO é o que mais gera e o que mais consome energia. Em março, foi responsável por 52% da geração nacional e consumiu 58%.
O Sul também é deficitário (consome mais do que produz). Em regra, os dois subsistemas precisam trazer eletricidade do Norte ou do Nordeste para dar conta da demanda.
Desde o ano passado, o Brasil também importa regularmente energia da Argentina e do Uruguai.
O subsistema Norte produz energia excedente principalmente no primeiro semestre, quando os rios estão altos. A principal fonte de geração na região vem das hidrelétricas “fio d’água”, que não têm grandes reservatórios.
João Sanches, diretor da consultoria Trinity Energia, afirma que a opção pela construção de usinas fio d’água, como a de Belo Monte, evitou maiores impactos ambientais do alagamento de grandes áreas.
Por outro lado, a geração ficou ainda mais dependente do regime de chuvas e da cheia dos rios.
O subsistema Nordeste também depende do período do ano. Sua maior geração acontece no segundo semestre, quando os ventos impulsionam a produção nas usinas eólicas.
O fato de o Norte e o Nordeste conseguirem produzir energia excedente em semestres diferentes poderia suprir a carência de outras localidades, ou ao menos reduzir o problema.
Mas a transmissão entre regiões esbarra na infraestrutura limitada. Sem rede para transportar mais eletricidade, parte da energia excedente fica presa na região de origem.
Quando o limite de transmissão é atingido e o subsistema não pode mais absorver a própria energia, o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), órgão privado ligado ao Ministério de Minas e Energia, ordena o desligamento de turbinas, para não sobrecarregar a rede.
Ou seja, há potencial de energia desperdiçado.
Questionado pelo UOL, o ONS não respondeu quantas vezes precisou pedir o desligamento de turbinas por causa dos limites de transmissão entre regiões nos últimos anos. Também não informou uma estimativa da energia desperdiçada nesses casos.
O ONS reconheceu a existência do problema e alegou “algumas intercorrências, como, linhas do sistema de transmissão planejadas para a integração da usina Belo Monte, que não foram completamente implantadas”.
Segundo o ONS, “as instalações que faltavam do sistema de integração da usina Belo Monte foram novamente licitadas e vêm sendo implementadas”.
O ONS também declarou que o sistema de transmissão vem sendo expandido para escoar o crescimento das fontes eólica e fotovoltaica (solar) no Nordeste e no norte de Minas Gerais.
A EPE, empresa federal de pesquisa energética também ligada ao Ministério de Minas e Energia, disse que houve atraso nas obras de transmissão concedidas à empresa Abengoa. As linhas estavam previstas para entrar em operação até 2017.
“A não implantação dessas obras dentro do cronograma previsto implicou restrições na operação do sistema de transmissão, ao longo dos últimos anos, estendendo-se até os dias de hoje”, afirmou a EPE.
O UOL procurou a Abengoa para comentar o caso, mas a empresa não respondeu até a publicação deste texto.
Ainda segundo a EPE, obras de expansão do sistema de transmissão com conclusão prevista para março de 2023 ampliarão a capacidade de exportação das regiões N e NE em 2,5 GW.
Segundo Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV, transmitir energia em territórios vastos é um desafio também para grandes economias globais, como os EUA e a União Europeia.
Por isso, é natural que o país ainda sofra limitações nessa troca de energia entre pontos distantes.
Juliana Chade, gerente de preços da consultoria MegaWhat, afirma que a dificuldade de transmitir energia excedente do Nordeste é relativamente recente, fruto da expansão de usinas eólicas na região.
“Antes [o subsistema NE] era muito mais importador de energia. Agora consegue ser exportador, mas as linhas de transmissão ainda estão sendo construídas.”
Para João Sanches, da Trinity Energia, o problema que estamos vivendo vem da falta de planejamento e investimentos de médio e longo prazo —principalmente em linhas de transmissão e diversificação das fontes energéticas.