Confira os crimes que juristas atribuem a Bolsonaro

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Foto: © Getty Images

Informações colhidas em mais de um mês de trabalho da CPI da Covid, no Senado, serão usadas para dar sustentação ao relatório final do colegiado e indicar quais autoridades devem passar à condição de investigadas, conforme sinalizou o relator Renan Calheiros (MDB-AL) na última sexta-feira (11).

Falhas que levaram ao atraso da campanha de vacinação no país, além da compra de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19 e incentivo ao desrespeito a medidas sanitárias necessárias para conter a doença estão entre os indícios de uma eventual responsabilização do presidente Jair Bolsonaro, avaliam professores de direito ouvidos pela Folha.

Como o papel dos senadores está restrito à fase do inquérito, caberá ao Ministério Público e ao Legislativo, no caso de impeachment, avaliar se as provas apresentadas pela CPI são suficientes para que isso ocorra.

Entenda quais condutas podem resultar em criminalização a partir da CPI da Covid.

Quais os limites da CPI para gerar responsabilização por atos durante a pandemia? Os resultados obtidos por Comissões Parlamentares de Inquérito variaram ao longo do período pós-redemocratização, a depender do encaminhamento dado ao relatório final produzido pelos parlamentares.

O processo de investigação consiste na coleta de provas testemunhais e documentais obtidas durante um prazo determinado por meio de oitivas, diligências e quebras de sigilo.

No caso da CPI da Covid, são 90 dias de trabalho, prorrogáveis, para apurar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia no país, em especial no colapso do sistema de saúde do Amazonas, em janeiro de 2021. Os parlamentares também investigam irregularidades no uso de recursos da União por estados e municípios.

Até a última semana, a CPI havia realizado 19 sessões, tomado 16 depoimentos e recebido quase 900 documentos para a análise dos técnicos e dos senadores.

A comissão aprovou ainda a quebra de sigilo telefônico e telemático dos ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e de integrantes do chamado “gabinete paralelo”, estrutura de aconselhamento do presidente Jair Bolsonaro para temas ligados à pandemia e com defesa de teses negacionistas.

A CPI também recebeu estudo feito pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da USP e pela ONG Conectas de mais de 3.000 normas editadas durante a pandemia.

A análise concluiu que houve uma estratégia institucional de propagação do vírus e aponta a necessidade de discutir a configuração de crimes de responsabilidade, contra a saúde pública e contra a humanidade.

Quais elementos obtidos pela CPI da Covid até o momento podem levar à criminalização de autoridades? Especialistas em direito ouvidos pela Folha ressaltam que apenas uma análise minuciosa, cruzando dados e depoimentos levantados pela comissão, indicará se há elementos para indiciamento de autoridades na esfera penal por prática de crimes comuns.

Numa análise preliminar sobre o trabalho da CPI até o momento, a advogada criminalista Juliana Bertholdi, especializada em crimes da administração pública e mestre pela PUC-PR, afirma que o descaso do governo federal na aquisição das vacinas já está suficientemente fundamentado para gerar responsabilização dos envolvidos.

Como revelou a Folha, uma série de emails enviados pela Pfizer buscando tratativas e fazendo ofertas de vacinas foram ignorados pelo governo, que só intensificou as conversas para comprar o imunizante do laboratório americano em dezembro.

A tentativa de alterar a bula da cloroquina para que o medicamento fosse prescrito para tratamento da Covid-19, apesar de não ter eficácia comprovada, é outra conduta que pode ser criminalizada, da mesma forma que a existência de um “gabinete paralelo” para aconselhamento do presidente Jair Bolsonaro, avalia a advogada.

Para Renato Vieira, diretor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), além do depoimento do representante da Pfizer, as falas do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten indicam “clara situação de calamidade pública que o governo causou”.

Foi o ex-secretário que revelou que a oferta de venda de vacinas da Pfizer ficou parada no governo por dois meses em 2020. O gerente-geral da empresa na América Latina, Carlos Murillo, confirmou a informação em depoimento à CPI e acrescentou que foram feitas ao menos cinco ofertas de doses de vacinas.

“Na minha opinião já não há nenhuma dúvida sobre a malversação dos recursos públicos nessa área, e a grande dúvida é se vai entrar como culpa ou se vai adentrar na área dos atos deliberados”, afirma Vieira.

Celso Vilardi, advogado criminalista e professor de direito da FGV-SP, afirma que, se houver comprovação de que omissões em relação à falta de oxigênio em Manaus resultaram em mortes, é possível que haja responsabilização.

Por outro lado, Vilardi diz considerar mais complicado conseguir tipificar condutas de questões que se confundem com a política do governo Bolsonaro.

Quais são os crimes, penas e punições cabíveis? Professora de direito constitucional da PUC-SP e autora do livro “As Competências do Poder Legislativo e as Comissões Parlamentares”, Gabriela Zancaner Bandeira de Mello afirma que os gastos injustificados feitos pelo governo em relação à produção de cloroquina configura crime de responsabilidade.

De acordo com o inciso nono do artigo 7º da lei 1.079 de 1950, é crime a violação de qualquer direito ou garantia individual previstos pela Constituição Federal, como o direito à saúde, aponta a professora.

Documento entregue à CPI mostra que foram distribuídos 2,9 milhões de comprimidos de cloroquina a estados e municípios entre abril e agosto de 2020.

O aumento da produção do medicamento foi um pedido da Saúde ao Exército. A demanda foi formalizada por meio de nota que orientava o uso da droga como “terapia adjuvante no tratamento de formas graves de Covid-19”, assim como a distribuição “rápida do fármaco”.

Por usar os laboratórios do Exército, Mello aponta que houve violação do artigo 9 da Lei de Improbidade Administrativa. “Por muito menos, o Fernando Collor sofreu impeachment após uma CPI”, afirma.

Além dos indícios contra o presidente Bolsonaro, a professora diz que também há elementos para a responsabilização de Pazuello por crime de responsabilidade, citando como exemplo o colapso da saúde em Manaus, pelo qual o general é investigado na Justiça comum.

“Não houve uma tomada de providência adequada. Pelo contrário, inclusive houve uma promoção dos medicamentos e do tratamento precoce, algo que a gente sabe que não promove nenhuma espécie de redução da pandemia nesses locais”, diz Mello.

Renato Vieira (IBCCrim) afirma que a negligência do governo, seja por não responder aos emails, por boicotar campanhas de vacinação ou dificultar a aquisição de insumos chineses para fabricação de imunizantes, indicam que o presidente violou a Constituição Federal.

“Todas essas situações, basta ter olhos para ver, significam no mínimo uma improbidade na administração, aí estamos falando de um crime de responsabilidade”, diz, citando o inciso 5º do artigo 85 da Constituição.

Já Vilardi (FGV) considera que as brechas deixadas pela lei 1.079 permitem que o crime de responsabilidade dependa de uma análise que é muito mais política do que jurídica, a ser feita pelo Legislativo, o que torna essa via de responsabilização pouco provável.

“A questão da promoção de aglomerações e a própria tese da imunidade de rebanho, dependendo do enfoque que você olha o crime de responsabilidade, poderia caber, mas essa não é uma questão para um jurista. A lei é propositalmente muito ruim porque ela propicia ao Congresso fazer interpretações à luz da popularidade e do clamor das ruas.”

Para Vieira (IBCCrim), além dos crimes de responsabilidade, há também indícios de prática de crimes comuns previstos pelo Código Penal, como infração de medida sanitária preventiva (artigo 268), periclitação da vida e da saúde (artigo 132), lesão corporal (artigo 129) e prevaricação (artigo 319).

Todos os delitos têm penas reduzidas, que podem chegar a detenção de um ano, além de multa. As condutas já foram indicadas em representações feitas à Procuradoria-Geral da República para que o presidente Bolsonaro seja denunciado ao STF (Supremo Tribunal Federal).

A advogada Juliana Bertholdi diz não enxergar a configuração dos crimes comuns mencionados, com exceção do artigo 268. Por seu baixo potencial ofensivo, porém, ela considera pouco provável que o crime seja indicado pela CPI.

No caso da prevaricação, ela afirma que a dificuldade é que o tipo penal exige a configuração de dolo específico, o desejo de satisfazer interesse ou sentimento pessoal, o que dificulta a tipificação da conduta.

Outro crime que vem sendo discutido no meio jurídico e também por técnicos da CPI é a hipótese de crime de epidemia, previsto pelo artigo 267. Na avaliação dos professores, a configuração também é improvável, pois é necessário comprovar que a autoridade foi responsável pela contaminação em si.

Para Bertholdi, a principal via de responsabilização é mesmo pela lei 1.079, uma vez que o presidente Bolsonaro nitidamente sabota ações sistemáticas de enfrentamento da pandemia, demonstra escárnio diante das mortes e contraria medidas sanitárias básicas.

“A violação do direito à saúde aparece em boa parte das manifestações que tenho acompanhado e acredito que vai ser o principal calcanhar de Aquiles do governo no momento”, diz, citando os artigos 4 e 7 da lei de 1950.

Quais as vias possíveis para responsabilização para autoridades com ou sem foro? No caso do presidente, cabe ao STF julgá-lo por crimes comuns. Se for essa a conclusão do relatório da CPI, caberá ao procurador-geral da República, Augusto Aras, avaliar se denuncia o presidente à corte. Para que Bolsonaro seja julgado, porém, é preciso ainda o aval de 342 deputados federais.

Demais autoridades federais, como ministros, deputados e senadores, também respondem perante ao STF. No caso de governadores, a denúncia deve ser feita ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). Autoridades sem prerrogativa de foro respondem na Justiça comum.

Caso o relatório da CPI aponte que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, cabe ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), avaliar se pauta ou não a votação de abertura de um processo de impeachment.

Renato Vieira (IBCCrim) destaca que, além da perda do cargo, os crimes de responsabilidade também podem resultar na inabilitação, por até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública. Caso o crime tenha sido praticado por um ex-ministro, por exemplo, pela vinculação ao presidente, o julgamento cabe ao STF.

A advogada Juliana Bertholdi acrescenta que ao fazer a análise sobre a criminalização é preciso avaliar o quanto a decisão daquela autoridade impactou, por exemplo, o direito à saúde.

“Um mau ministro necessariamente não é um ministro que cometeu um crime de responsabilidade. Da mesma forma, o fato de o ministro estar em outra pasta não o exime de uma eventual responsabilização”, diz.



CRIMINALIZAÇÃO VIA CPI
Crimes comuns previstos no Código Penal

Artigo 129: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem
Pena: detenção, de três meses a um ano

Periclitação da vida e da saúde

Artigo 132: Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente
Pena: detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Prevaricação

Artigo 319: Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Crimes contra a saúde pública

Artigo 267: Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena: reclusão, de dez a quinze anos

Artigo 268: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa
Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa.

Crimes de Responsabilidade

Constituição Federal
Lei 1079/1950
Crime de improbidade administrativa

Lei 8429/1992
> utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal, dos Municípios, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades (Artigo 9, inciso 4)

Folha de S. Paulo