Documentos mostram que Bolsonaro desconfiava de vacinas
Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo/
Telegramas secretos do Itamaraty, em posse da CPI da Covid e obtidos pelo GLOBO, relatam que, em fevereiro deste ano, o governo brasileiro ainda resistia a assinar contrato para adquirir vacinas das farmacêuticas Pfizer e Johnson, que já tinham selado acordo com cerca de 70 países para fornecer bilhões de doses.
Classificado como “secreto” e com prioridade “urgente”, um dos telegramas foi endereçado pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) a 19 embaixadas brasileiras. O documento, enviado em 24 de fevereiro deste ano, solicitava que os diplomatas sediados em diferentes países fizessem uma “consulta informal às autoridades locais” sobre os termos dos contratos confidenciais assinados com a Pfizer e Johnson.
“No intuito de subsidiar e orientar o seguimento das negociações, e em que pese a confidencialidade dos contratos, muito agradeceria a Vossa Excelência a gentileza de consultar informalmente as autoridades locais, a fim de averiguar como foram recebidas e processadas as referidas questões contratuais com o laboratório Pfizer, no que se refere a vacinas contra a COVID-19”, diz trecho do telegrama do Ministério das Relações Exteriores.
O documento ainda expõe os motivos que levaram o governo brasileiro a não assinar o contrato com laboratórios internacionais como a Pfizer para garantir vacinas naquele momento. Dentre eles, estão: “a assunção, pelo governo, da responsabilidade civil por eventuais danos colaterais das vacinas”, “a alienação de ativos do país no exterior em benefício da farmacêutica como garantia de pagamento” e “a determinação de que eventuais litígios entre empresa e governo sejam resolvidos na Câmara Arbitral de Nova York”. Naquele momento, só a Pfizer já tinha celebrado contratos para a entrega de mais de dois bilhões de doses a 69 países.
A Pfizer encaminhou a primeira proposta ao governo Bolsonaro de fornecimento de 70 milhões de doses da sua vacina no dia 15 de agosto do ano passado, segundo informou a própria empresa. A entrega inicial estava previstas para dezembro, mas o Ministério da Saúde não se manifestou. Somente em março, no final da gestão de Eduardo Pazuello o primeiro contrato para o recebimento de 100 milhões de doses foi assinado. O país, porém, deixou de receber 4,5 milhões de doses até março, conforme revelou a farmacêutica à CPI. Em maio, outro contrato foi assinado para a entrega de mais 100 milhões de doses até o fim do ano.
O fechamento de contrato com a Johnson também demorou e somente em março o Brasil assinou a compra de 38 milhões de doses, com previsão de entrega apenas a partir do terceiro trimestre. Uma negociação concluída neste mês permitiu o envio de 3 milhões de doses na próxima semana. Como a vacina que será recebida tem validade apenas até o dia 27 de junho, o governo deve fazer um mutirão para aplicação e restringir o uso às capitais. A vacina da Johnson tem como diferencial ser de dose única, enquanto as principais concorrente necessitam de aplicação de duas unidades para a imunização.
Ao mesmo tempo em que relutava em assinar contrato com a Pfizer e Johnson, em março, o então chanceler, Ernesto Araújo, foi a Israel conhecer um spray nasal que não tinha ainda eficácia comprovada no tratamento contra a Covid-19. Ele estava acompanhado do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que, assim como ele, foi demitido sob críticas até mesmo de aliados do Planalto. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) também estava na comitiva.
O encontro entre a comitiva brasileira e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, foi relatado em um telegrama Itamaraty enviado em março deste ano. “Bibi Netanyahu lembrou que o spray nasal EXOCD-24 vem obtendo resultados muito promissores no tratamento de doentes moderados e graves infectados com COVID-19”, diz trecho do documento assinado pelo embaixador do Brasil em Israel, Gerson Menandro Garcia de Freitas. O spray foi aprovado para uso apenas em Israel e na Nova Zelândia. No Brasil, não foi fechado qualquer acordo para o fornecimento do medicamento experimental.
A repercussão negativa em torno da negociação para aquisição do spray nasal israelense fez o governo recuar. Nas redes sociais, o medicamento chegou a ser apelidado de “nova cloroquina” do presidente Jair Bolsonaro. Uma carta de intenções chegou a levar a assinatura do então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e da diretora da empresa fabricante, mas a compra do produto nunca se concretizou.
Dois dias antes de o governo Bolsonaro assinar contrato com Pfizer, o embaixador brasileiro em Israel enviou um telegrama a Ernesto Araújo, relatando que Netanyahu topou pagar “preço majorado pelas vacinas (da Pfizer), a fim de assegurar prioridade no recebimento das doses”, que chegaram ao país em 9 de dezembro de 2020. “O próprio primeiro-ministro Netanyahu chegou a dar declarações públicas no ano passado de que ‘o custo elevado pago à Pfizer seria amplamente compensado pela retomada antecipada do funcionamento da economia e, por conseguinte, do crescimento econômico em relação aos demais países'”, diz o documento. Procurado, o Itamaraty não respondeu.