Juízes eternizam “bônus temporário”
Foto: Pedro Ladeira – 14.dez.16/Folhapress
Um bônus temporário criado para beneficiar juízes por acúmulo de função ou ações virou praxe, segundo auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União). Técnicos defendem regras mais rígidas para esse adicional e devolução de recursos.
A chamada GECJ (gratificação por exercício cumulativo de jurisdição) foi instituída por leis federais em 2015. As regras para o pagamento são regulamentadas por órgãos do próprio Judiciário.
Pela lei, têm direito ao extra de um terço sobre o salário magistrados que trabalhem em duas varas ou recebam volume excessivo de novos processos, por exemplo.
Com a reforma administrativa em andamento no Congresso, Judiciário e Ministério Público estão fora das mudanças propostas. O texto já recebeu aval na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara e vai à comissão especial.
Congressistas a favor de mudanças nas regras do funcionalismo defendem a inclusão de outros Poderes, além do Executivo. Entre os focos estão a organização das carreiras e benefícios do setor público.
No caso da gratificação dos magistrados, o pagamento fica restrito ao teto constitucional. Hoje, o limite é o salário de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), de R$ 39,3 mil.
Um juiz titular federal ou do trabalho ganha R$ 33,7 mil por mês —o salário de um juiz substituto é de R$ 32 mil. Desembargador do trabalho ou juiz federal de 2º grau recebe R$ 35,5 mil mensais.
O problema, segundo auditoria do TCU, é que o benefício tem sido pago a magistrados mesmo sem eles ter feito nenhum esforço a mais para merecê-lo, como determina a legislação.
O MPTCU (Ministério Público junto ao TCU) emitiu um parecer no qual concorda com as conclusões do relatório dos técnicos. Os pagamentos seriam analisados pelos ministros em plenário no dia 28 de abril.
Na véspera da sessão, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) e Ajufe (Associação dos Juízes Federais) pediram para fazer sustentação oral no caso. Procuradas, as entidades não responderam.
O processo, então, saiu da pauta. O caso tramita no tribunal já faz três anos.
Realizada em 2018, a auditoria analisou dados de tribunais e resoluções do CJF (Conselho da Justiça Federal), CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho), TJDFT (Tribunal da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios) e STM (Superior Tribunal Militar).
O relatório calculou os prejuízos aos cofres da União, à época, em R$ 82,9 milhões por ano, ou R$ 331,5 milhões em quatro anos. Com o reajuste do Judiciário, de 16,38% a partir de 2019, o montante chega a R$ 372,2 milhões.
Os auditores Fernando Facchin Filho e Fabiano Nijelschi Guercio Fernandes reforçaram no documento enviado ao relator, ministro Raimundo Carreiro, que a gratificação tem caráter eventual —ou seja, deve ser paga por período determinado.
Segundo eles, as regras dos órgãos, porém, permitem torná-la fixa e generalizada.
“O resultado das análises apontou que praticamente todos os magistrados de 1º e 2º graus da Justiça Federal e do TJDFT recebem a gratificação. A proporção de beneficiários não alcança 100% em razão de afastamentos (férias, licenças) ou outras situações excepcionais”, escrevem.
“Na prática, a aplicação distorcida das leis instituidoras da gratificação faz com que grande parte da magistratura federal receba mensalmente a mesma remuneração paga aos ministros do Supremo Tribunal Federal”, afirmam.
Isso ocorre, segundo Facchin Filho e Fernandes, porque as normas que regulamentam os pagamentos “estão em conflito com o objetivo das leis instituidoras da GECJ, expresso nas justificativas que embasam os respectivos projetos de lei, bem como com regras constitucionais e com resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”.
Eles citam desembargadores beneficiados por atuar em pleno e em turma, tribunais que não medem esforço adicional dos magistrados e inclusão indevida do benefício na gratificação natalina —ou seja, quando não há trabalho.
Facchin Filho e Fernandes propõem soluções na auditoria. Para eles, o TCU deve recomendar que o Conselho da Justiça Federal, o tribunal militar e o tribunal do DF adotem medidas para assegurar a concessão do benefício “apenas quando caracterizada situação extraordinária de acúmulo e esforço excessivo do magistrado”.
A mesma recomendação é feita ao CSJT no caso do pagamento do benefício a desembargadores.
Em 16 de abril de 2020, o MPTCU deu parecer favorável às conclusões dos técnicos. O documento é assinado pelo procurador Marinus Eduardo De Vries Marsico.
“Da análise dos elementos contidos nos autos, entendemos que as irregularidades detectadas pela equipe de auditoria foram bem caracterizadas e devidamente fundamentadas”, escreveu.
Segundo o procurador, “não há dúvida de que situações encontradas” pelos técnicos “distorcem o objetivo da gratificação, que deveria ser a remuneração pelo serviço extraordinário ou pela carga excessiva de trabalho”.
Marsico, no entanto, afirma que a devolução de recursos, como proposto pelos técnicos no caso dos pagamentos feitos na gratificação natalina, tem efeito retroativo limitado a cinco anos.
Em despacho do dia 6 de maio deste ano, o ministro Carreiro, do TCU, tirou o pedido de análise da pauta para que as entidades —AMB e Ajufe— “pudessem apresentar informações que entendam relevantes
para o deslinde da questão discutida nestes autos”.
“Por entender que a matéria a ser decidida por esta Corte de Contas tem, com efeito, elevado potencial de impactar a esfera jurídica dos magistrados representados pelas peticionárias acima identificadas, inclusive com repercussão econômica, entendi por bem retirar o presente processo da aludida pauta de julgamentos, a fim de permitir a intensificação do diálogo processual, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa”, escreveu.
Segundo a assessoria de imprensa do TCU, não há previsão de nova data para análise do processo.
Os conselhos e tribunais responsáveis pelas normas da chamada GECJ (gratificação por exercício cumulativo de jurisdição) disseram que os pagamentos são realizados quando há sobrecarga de trabalho.
Procuradas, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) e a Ajufe (Associação dos Juízes Federais) não responderam.
No dia 28 de abril, quando o processo foi retirado da pauta do plenário do TCU (Tribunal de Contas da União), a AMB informou a associados, em seu site, que a corte havia acatado o pedido da entidade “que solicitava a realização de sustentação oral, bem como a retirada de pauta do processo 002.775/2018-2, que versa sobre a correta observância das normas pertinentes à gratificação por acúmulo de função, que tem sido paga aos magistrados vinculados à União”.
De acordo com o site, o ofício encaminhado ao ministro Raimundo Carreiro, relator do caso, diz que “a Loman [Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de 1979] estabelece que o número máximo de processos distribuídos e julgados por membros dos tribunais é de 300”.
Segundo a entidade, há cargos vagos no Judiciário. “No estudo realizado pelo CNJ (Justiça em Números), já há alguns anos, foi identificado que o Brasil possuía 4.400 vagas para juiz em aberto, sendo certo que o maior índice de cargos vagos estava na Justiça Federal. Era de 26% em 2016”, diz a AMB.
O CJF (Conselho da Justiça Federal) afirma, em nota, que o benefício é devido aos magistrados que, por período superior a três dias úteis, acumulem o exercício da jurisdição em mais de um órgão, como nos casos de atuação simultânea em varas distintas, em juizados especiais e em turmas recursais.
“O que está sendo remunerado, portanto, é o trabalho a mais que o magistrado deve fazer para responder, além de sua unidade de origem, por uma outra unidade que está vaga”, diz.
Segundo o CJF, a Loman limita o número de processos a 300 por ano por magistrado, e a resolução do órgão, de 2015, estabelece que, sempre que sejam distribuídos para cada juiz mais de 1.500 novos processos cíveis ou 850 processos novos processos criminais por ano, deve ser dividido o acervo.
O objetivo, diz, é garantir uma divisão equitativa dos acervos processuais entre os magistrados.
“Assim, considera-se que os magistrados que estejam lotados em unidades que recebam uma carga de novos casos superior a tais limites estão atuando em mais de um acervo”, afirma.
O CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho) diz, em nota, que tem “papel de [órgão] setorial no processo” e não faz o pagamento —uma responsabilidade dos TRTs (Tribunais Regioniais do Trabalho).
“Cabe ao CSJT fazer o acompanhamento e controle das despesas totais. O CSJT realiza auditoria para verificar o cumprimento dessa norma pelos TRTs, promovendo a regularização das situações”, diz.
A despesa anual total da GECJ na Justiça do Trabalho nos últimos três anos, segundo o conselho, foi de R$ 69,1 milhões em 2018, R$ 50,3 milhões em 2019 e R$ 57,4 milhões em 2020.
Segundo o órgão, a gratificação foi regulada por uma resolução de 2015 que determina como critério no 1º grau a atuação individual do magistrado em vara do trabalho com mais de 1.500 casos novos por ano.
“A lógica é que o magistrado estaria atuando com carga de trabalho dobrada, de modo que a gratificação cumpriria o papel de compensação”, diz.
No caso do 2º grau, afirma o CSJT, o benefício é devido quando o desembargador atua em turma e outro colegiado com competências funcionais distintas. Também é paga a gratificação a desembargadores que recebem mais de 1.500 casos novos por ano.
O CSJT também diz que, em decorrência de decisões proferidas pelo CNJ em procedimentos de controle administrativo, promoveu alterações da resolução em novembro de 2020.
Entre elas está a revogação da regra que impedia que o juiz com sentenças em atraso —então elogiada pelos técnicos do TCU— recebesse a gratificação, “de modo que, mesmo tendo sentenças atrasadas, o magistrado passou a ter direito à gratificação”.
Segundo o conselho, não foram reconhecidos efeitos retroativos de decisões do CNJ que ampliaram a possibilidade de recebimento da gratificação de acúmulo. “Alguns magistrados ajuizaram ações na Justiça Federal postulando o valor a título retroativo.”
O conselho afirma ainda que não é parte no processo do TCU, não foi intimado nem chamado a se manifestar no caso.
O STM (Superior Tribunal Militar) diz, em nota, que regulou o benefício por meio de uma resolução de 2015 e que, atualmente, “a quantidade de magistrados que recebe essa vantagem é menor, haja vista a completude dos cargos ocupados”.
“O Tribunal de Contas da União, em 2018, solicitou que a JMU [Justiça Militar da União] respondesse a um questionário, anexando documentos comprobatórios, relativo ao processo de concessão e de pagamento da citada gratificação. O TCU confirmou a conclusão do preenchimento do questionário e o seu recebimento. Até o momento, não foi recebida qualquer recomendação do TCU para adoção de providências”, diz.
O TJDFT (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios) afirma, em nota, que o tema foi regulamentado internamente pela resolução n. 4/2015 e posteriormente pela n. 10/2016.
Segundo o tribunal, desde o início, a regulamentação do tema foi pautada nas disposições da Lei 13.094/2015 e, em todas as fases da implementação da gratificação, foram respeitados os limites constitucionais e legais quanto à remuneração dos magistrados.
“O tribunal registra também que sempre acatou as determinações do Tribunal de Contas da União e, quanto ao tema em questão, no acórdão 585/2016-TCU-Plenário, as normas internas do TJDFT foram consideradas perfeitamente regulares, conforme voto do ministro-relator, Raimundo Carreiro”, afirmou.
O atual caso foi aberto por recomendação do ministro Bruno Dantas, em 2017.