PGR é acusado de sabotar inquérito de atos antidemocráticos
Foto: Reprodução/ Estadão
O inquérito dos atos antidemocráticos foi aberto em abril de 2020 para investigar aliados do presidente Jair Bolsonaro envolvidos com as manifestações que defendiam o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal) e do Congresso Nacional, além da volta da ditadura militar.
Em oitos meses de apuração, a partir de buscas e quebra de sigilos bancário e telemático, a Polícia Federal coletou informações sobre influentes nomes do bolsonarismo, como o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten, o blogueiro Allan dos Santos e o empresário Otávio Fakhoury.
Uma troca de mensagens recuperada pela PF, por exemplo, mostrou um grupo apoiador do presidente discutindo com Wajngarten a criação de um departamento de “comunicação estratégica e contrainformação” para assessorar Bolsonaro.
Em outra sequência, Wajngarten pediu a Allan “ajuda nas redes”, após compartilhar nota emitida por ocasião de reportagens da Folha que apontavam irregularidades na Secom. Allan respondeu: “Bora bater sem parar”. O secretário agradeceu: “Obrigado amigão”.
As mensagens compõem farto conjunto de informações anexado ao inquérito dos atos antidemocráticos, cujos autos principais somam mais de 1.300 páginas, distribuídas em sete volumes, sem falar nas dezenas de anexos.
A PF defendeu o aprofundamento das investigações em dezembro. A Procuradoria, por sua vez, levou cinco meses para se pronunciar e seguiu linha contrária à da polícia. O órgão pediu ao Supremo o arquivamento do caso perante o tribunal. A manifestação ocorreu às vésperas da abertura de vaga no STF, para qual o procurador-geral da República, Augusto Aras, sonha ser indicado.
A palavra final sobre o caso caberá ao ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito. Antes de decidir, porém, o magistrado levantou o sigilo dos autos principais e de uma parte dos anexos.
O que é investigado no inquérito dos atos antidemocráticos? A investigação foi instaurada a pedido da PGR para identificar os organizadores e financiadores de manifestações realizadas em abril do ano passado que pediam o fechamento do Congresso e do STF, além do retorno da ditadura militar.
Quais medidas de investigação foram cumpridas até o momento? A principal operação realizada no inquérito ocorreu em junho do ano passado, quando foram cumpridos 21 mandados de busca e apreensão autorizados pelo ministro Alexandre de Moraes. Parlamentares, blogueiros e empresários foram alvos da PF.
Com celulares e arquivos dos investigados apreendidos, a polícia elaborou relatórios em que separou diálogos e elementos que poderiam ajudar na elucidação da estrutura usada para fomentar os protestos antidemocráticos. Também no âmbito desse inquérito foram decretadas as prisões da militante Sara Winter e do jornalista Oswaldo Eustáquio, entre outros.
Quem são os principais alvos do inquérito? Além de parlamentares da base de apoio do presidente no Congresso, a PF investiga dezenas de pessoas, entre empresários, militantes e responsáveis por perfis de apoio a Bolsonaro nas redes sociais. Auxiliares diretos do chefe do Executivo no Palácio do Planalto também são alvos da apuração.
Dois filhos do presidente — o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) — foram ouvidos pela polícia na condição de testemunhas.
A PF também chegou a pedir que fossem cumpridos mandados de busca e apreensão contra o então secretário de Comunicação do governo, Fábio Wajngarten, e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
O blogueiro Allan dos Santos, responsável pelo canal Terça Livre, um dos mais populares entre os apoiadores de Bolsonaro, o empresário Otávio Fakhoury, o advogado Luís Felipe Belmonte e o marqueteiro Sérgio Lima — esses dois últimos envolvidos na criação da Aliança, partido que o chefe do Executivo pretendia criar —, também são considerados peças importantes do inquérito.
O que a PF e a PGR encontraram contra os envolvidos? Entre outras coisas, a polícia identificou que 12 perfis bolsonaristas no YouTube receberam mais de R$ 4 milhões entre 2018 e 2020 via monetização de vídeos publicados em apoio ao chefe do Executivo, muitos deles com ataques às instituições.
Colheu informações de que alguns dos responsáveis por esses perfis mantinham contato com assessores especiais da Presidência, especialmente Tércio Arnaud, apontado como um dos integrantes do chamado “gabinete do ódio”, grupo tutelado por Carlos Bolsonaro, segundo revelou a Folha.
A PF levantou informações sobre a organização dos atos democráticos. Identificou, por exemplo, que Renan Sena, então terceirizado no ministério de Damares Alves, arcou com despesas de carros de som usados nas manifestações, incluindo a do dia 19 de abril de 2020, em frente ao QG do Exército e que contou com a participação de Bolsonaro.
Quais os achados relevantes da PF durante a apuração sem vínculo direto aos atos antidemocráticos? A polícia encontrou no computador do empresário Otávio Fakhoury notas fiscais emitidas por duas gráficas do Nordeste. Os documentos indicam que Fakhoury custeou material de divulgação da campanha de Bolsonaro à Presidência da República nas eleições em 2018. Não há registro dessa doação na Justiça Eleitoral. De acordo com o material, foram contratados serviços para a impressão de 560 mil itens de propaganda eleitoral, entre panfletos e adesivos com foto do candidato.
Fakhoury emitiu comunicado em que afirmou que as notas fiscais “referem-se a pagamento de despesas de amigos que fazem parte de movimentos sociais”. “Por não se tratarem de doação à campanha do candidato, não comuniquei a ele, à coordenação da campanha ou a pessoas próximas a ele sobre esses pagamentos”, disse o apoiador do presidente Bolsonaro.
O que o inquérito identificou sobre o trabalho da Fabio Wajngarten como secretário de Comunicação do governo? Diálogos entre Wajngarten e Allan do Santos mostram a atuação do então secretário do governo para ajudar o blogueiro a se aproximar do que chamou de “mídia aliada”. Nas conversas entre os dois via Whatsapp, Wajngarten diz que é “muitos próximo da cúpula de todas as emissoras”.
Wajngarten também demonstra a Allan dos Santos preocupação com atrasos em pagamentos do governo à Band e à “RTV”, em possível referência à RedeTV. “Caixa devendo dinheiro pra BAND, RTV”, diz, após afirmar que “os aliados estão furiosos”.
Além disso, o secretário também recorreu a Allan para pedir ajuda em meio à crise desencadeada por informação revelada pela Folha de que sua empresa mantinha contratos com veículos de comunicação que recebiam verba publicitária do Executivo. “Me ajuda nas redes”, solicitou.
Depois, ele compartilha notícia de que MP de Contas queria revisão das verbas publicitárias do governo e diz que eles “querem o retorno dos 80% para a Globo”. Allan responde: “Bora bater sem parar”. O secretário agradece: “Obrigado amigão”.
Por que a PGR pediu arquivamento dos casos relativos aos parlamentares? Apesar de a PF sustentar que há elementos que indicam a necessidade de mais investigação, a PGR afirma não ter encontrado nenhuma prova que vincule os 11 parlamentares investigados aos atos antidemocráticos. A Procuradoria afirmou que nenhuma das hipóteses criminais investigadas pela PF foi corroborada por provas e que a investigação “tomou um rumo completamente diferente” no curso das apurações. Por isso, segundo a PGR, o trabalho da PF tornou-se de “difícil compreensão para as equipes envolvidas com o inquérito”.
O que o eventual arquivamento representa para o governo Bolsonaro? Além dos filhos do presidente, o inquérito envolve pessoas influentes no universo bolsonarista. O pedido de arquivamento reforça o discurso do presidente e de seus aliados de que as manifestações foram atos de apoio a ele e que pautas antidemocráticas foram defendidas apenas de maneira isolada e sem uma organização nesse sentido.
Por que a PGR levou cinco meses para se manifestar sobre o relatório da PF? Em dezembro, após oito meses de apuração, a PF enviou ao ministro Alexandre de Moraes relatório inconclusivo sobre o trabalho, frisando que era preciso aprofundar. Moraes enviou o documento para a PGR opinar.
De acordo com a PGR, os autos chegaram ao órgão em janeiro, mês de férias no STF e na Procuradoria, e começaram a ser analisados em fevereiro. A PGR afirma ainda que a polícia não apontou nem sequer a que folhas dos autos correspondiam os elementos probatórios e depoimentos. “Foi necessário que a PGR destacasse equipe para sanear a organização dos autos e identificar em quais dos mais de 50 volumes estavam os elementos citados no relatório da PF”, disse, em nota enviada à Folha.
Por que a PF discordou da metodologia proposta pela PGR para a investigação? A delegada Denisse Dias Ribeiro, encarregada do inquérito na PF, afirmou ao Supremo que as “ações concomitantes” solicitadas pela Procuradoria no início das investigações resultariam em volume demasiado de dados, o que seria contraprodutivo para a apuração.
É comum que ambos os órgãos participem da mesma apuração. Geralmente, os dois têm linhas investigadas comuns para facilitar a verificação dos elementos investigados. Os desentendimentos, porém, ocorreram desde o início, inclusive em relação à principal operação, de junho do ano passado, quando ambos os órgãos divergiram sobre as medidas a serem realizadas.
Houve outras discordâncias entre PF e PGR? Em junho, dois meses após a abertura do inquérito, a polícia pediu a Moraes para realizar buscas na Secom (Secretaria de Comunicação), na casa do então titular da secretaria, Fábio Wajngarten, em três agências publicidade contratadas pelo governo federal e no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta comandada por Damares Alves. No final de agosto, a PGR enviou parecer a Moraes discordando da PF por considerar que na ocasião não havia informações mais concretas sobre o envolvimento de servidores públicos.
O que a PGR sugere que tenha prosseguimento em primeira instância? A Procuradoria solicitou a Alexandre de Moraes que seis investigações contra pessoas sem foro especial sejam prosseguidas em primeira instância. Entre elas, está uma renegociação do valor do aluguel de um terreno do empresário bolsonarista Otávio Fakhoury com a Petrobras. Um acordo extrajudicial teria elevado o valor do negócio de R$ 30 mil mensais para R$ 110 mil em um primeiro momento e, depois, para R$ 150 mil. Outro caso diz respeito ao “fluxo da monetização” realizado por Allan dos Santos, dono do canal bolsonarista Terça Livre.
Por que os deputados Otoni de Paula (PSC-RJ) e Daniel Silveira (PSL-RJ) foram denunciados pela PGR ao Supremo, o que não ocorreu com outros parlamentares alvos do inquérito? Segundo as acusações enviadas ao Supremo, os parlamentares cometeram o crime de coação por tentar intimidar quem poderá julgá-los. A coerção ocorreu no curso da investigação, mas não era um crime que figurava entre os tipos penais previstos inicialmente para serem apurados.