Polícia de Tabatinga (AM) intimida família de jovem que torturou e matou
Foto: Fabiano Maisonnave / Folhapress
No meio da tarde de 12 de junho, um sábado, o trabalhador de turismo Antonio Rengifo Vargas deixou sua casa em Santa Rosa (Peru), atravessou o rio Solimões de barco e chegou a Tabatinga (AM) para celebrar o aniversário de 20 anos, completados na véspera.
Detido em seguida pela Polícia Militar do Amazonas, apareceu morto no dia seguinte no lixão da cidade, ao lado de outros dois corpos. Após investigar por conta própria, seu pai, o empresário de turismo Antonio Rengifo Baldino, 50, não tem dúvidas de que ele foi torturado e assassinado por PMs. Ameaçado, ele não procurou nenhuma autoridade brasileira e recorreu ao consulado da Colômbia na cidade.
Filho de brasileira e, assim como o filho, de dupla nacionalidade peruana e colombiana, o empresário foi o único entre os familiares de sete mortes e duas desaparições atribuídas à Polícia Militar do Amazonas que aceitou dar entrevista, concedida em Leticia por questões de segurança.
Meu filho tinha prestado serviço militar no Peru e trabalhava comigo no meu hotel flutuante. No dia 12, um dia depois de fazer aniversário, disse que iria festejar com os colegas. Ele cruzou para Tabatinga por volta das 15h30, 16h.
Estou investigando porque não quero que a morte do meu filho fique impune. A versão mais fresca que tenho neste momento é que meu filho chegou ao porto, pegou uma mototáxi e subiu para a cidade. No caminho, tinha uma patrulha da Polícia Militar.
A patrulha perguntou a nacionalidade. Quando ele tirou o documento e mostrou que era peruano, a polícia colocou dentro do carro e levou.
A partir daí, não tivemos mais notícias do meu filho. No domingo, um rapaz disse a meu irmão que havia vários corpos no lixão de pessoas assassinadas. Meu irmão foi lá, mas, quando viu os corpos, não conseguiu identificar o sobrinho. Ele não conseguia acreditar.
Aí o meu filho mais velho recebeu uma ligação anônima dizendo que tinham matado o irmão dele. Meu filho veio me procurar no trabalho. Nesse momento, os bombeiros já tinham recolhido o corpo. Então, meu irmão foi para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Lá, a assistente social perguntou qual era o nome do meu filho e confirmou que tinha um cadáver com esse nome.
Quando o meu irmão pediu os documentos dele, ela disse que estavam com a polícia. Quando ele chegou lá, o policial perguntou:
“Quem é você?”
“Eu sou o tio.”
“Ah, você é um filho da puta.”
“Eu não vim pedir laudo, vim pedir o documento do meu sobrinho.”
“Vê o documento desse bandido, vê se está na lista.”
“Para com isso, sou funcionário público.”
“Não me interessa quem você é.”
Quando pegaram a ficha criminal e não encontraram nada, o policial disse: “Veja bem o que você vai falar, se você não quer que alguma coisa aconteça com você”.
Meu filho não tinha ficha criminal, não tinha sido preso nem nada. O sonho dele era ser militar. Todo o tempo usava cabelo com corte militar.
Quando meu irmão voltou ao hospital e disse que queria pegar o laudo para ir ao cartório, para pegar o corpo, para enterrar, o policial disse: “Veja bem o que você vai falar”. Ele pegou o laudo e disse: “Mas aqui não tem nada que eu estou vendo no corpo do meu sobrinho”.
O policial disse: “Cala a tua boca e pega como está aí”. Aí o médico disse alguma coisa, e o policial: “Cala a tua boca e faça o que eu disse”.
A polícia estava em cima o tempo todo. Essas assinaturas aqui são falsas, as pessoas que constam aqui não estavam presentes. Nem a delegada nem esses dois peritos. Quem preencheu foi um médico na presença de um policial. E o policial dizia: “Faça o que eu digo”.
Segundo o laudo, deram quatro tiros neles. Um foi na nuca, outro no peito, dois no pescoço. É o que diz o laudo. Só que, atrás da cabeça dele, tinha três feridas de bala. E no peito dele tinha uma furada de 2, 3 cm, um corte grande. E tinha muita tortura, o corpo estava todo batido, a mão estava cortada. Isso não aparece no laudo. O corpo estava achatado. A mão dele estava toda preta, como se tivessem amarrado, queimado. Antes de matarem, torturaram o menino.
Quando a gente pegou o corpo, o meu irmão não queria me dizer o que tinha acontecido. Disse que, se a gente velasse o corpo do menino, eles poderiam metralhar o velório.
Eu disse: “Isso não existe, nunca fizemos nada mau”.
O único cadáver velado foi o do meu filho. Foi uma tristeza, a cada dez minutos passava uma mãe levando o seu filho, enterraram todos no mesmo dia.
Durante o velório, a polícia passou mais de 30 vezes de carro, bem devagarinho, apontando o fuzil. A polícia foi à casa do meu irmão intimidá-lo também. Eles intimidaram o rapaz que nos transportou no dia do enterro.
Eu não me sinto seguro para ir à Polícia Civil. A situação está tão crítica que, como colombiano, eu recorri ao meu consulado.
O consulado já enviou cartas para as polícias Civil, Militar e Federal, e eles vão tentar fazer todo o esclarecimento para que a morte do meu filho não fique impune. O próprio cônsul me disse para não ir à polícia. Quando as autoridades estão dizendo para não procurar, é por alguma coisa.
Dias depois, soube que a morte foi por volta das 3h45 da manhã. Tiraram-no da delegacia, e os policiais perguntaram: “O que faz com esse rapaz? A gente solta?”. E aí veio uma voz de dentro: “Mata todos esses bandidos”. O rosto dele já estava todo arrebentado, o septo nasal partido. Aí o jogaram para dentro do carro. Disseram que o meu filho estava no lugar errado e que tinha acontecido isso.
Imagino o menino chamando pelo pai, chamando pela mãe.
Eu só quero justiça para que amanhã isso não aconteça com outra mãe. Na Constituição, não tem pena de morte. A população agora tem mais medo da polícia do que dos bandidos. Os bandidos pegam pelas costas, mas a polícia vem de frente e te mata. Eu me sinto muito assustado.
Nem todos os policiais são maus. Conheço policiais bons. Na agência de turismo, tive a possibilidade de guiar policial federal, civil. Mas não encontro explicação. Não cabe que um ser humano tenha a coragem de fazer o que fizeram com o corpo do meu filho.
Toda a minha vida eu me dediquei ao turismo. Desde os 8 anos, comecei como engraxate, depois fui mensageiro de hotel e aí estudei para guia. Construí a Reserva Nacional do Rio Javari, em Atalaia do Norte (AM), em 1992. Construí a reserva natural Paumari, também no lado brasileiro. Tenho um projeto no lado brasileiro, no lado peruano, tenho uma agência.
O senhor pode ter certeza que o meu filho não fazia parte de nenhuma facção. Meu filho trabalhava comigo, na balsa de turismo. Está circulando um áudio dizendo para a polícia que eles mataram muita gente inocente.
Se a morte do meu filho servir ao menos para parar com essa chacina que estão fazendo, será a melhor coisa com que ele terá contribuído no curto tempo em que esteve na Terra.
Assinatura
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