Regiões ricas dão menos oportunidades a negros
Foto: Danilo Verpa/Folhapress
Prosperidade econômica nem sempre caminha lado a lado com menor discriminação racial. O Sudeste é, ao mesmo tempo, a região mais rica do Brasil e a que mais impõe barreiras para que pretos e pardos tenham as mesmas oportunidades que brancos. Já o Sul ocupa a segunda posição nos dois casos.
Isso não significa que um menor hiato entre brancos e negros (a soma de pretos e pardos) só ocorra em locais pobres, onde há pouco a distribuir. Entre o alto nível de desenvolvimento do Sul e do Sudeste e a carência do Norte e do Nordeste, o Centro-Oeste se tornou a região com a menor desigualdade pela cor da pele.
As conclusões vêm de um novo projeto da Folha para jogar luz sobre as múltiplas desigualdades raciais do país, ao mensurar o acesso dos negros às melhores condições de vida nas cinco áreas geográficas e 27 unidades da federação.
A ferramenta que possibilita as comparações, inédita, é o Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), cuja metodologia foi elaborada pelos economistas do Insper Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella.
Sua proposta é medir a distância entre, de um lado, a realidade de desigualdade racial nos estados e nas regiões do país e, do outro, um cenário hipotético de equilíbrio, em que a presença dos negros em estratos de elite refletisse seu peso na população de 30 anos ou mais.
Os componentes que buscam condensar essa ideia são a posse de, no mínimo, um diploma de ensino superior e a presença no topo da distribuição de renda e no grupo de habitantes mais longevos. Essas três dimensões têm pesos equivalentes no índice.
O Ifer pode variar de -1 (pior cenário possível para os negros) a 1 (pior situação possível para os brancos).
“Nossa ideia foi sintetizar na estatística várias barreiras que o negro enfrentou ao longo da vida”, diz França, que é também colunista da Folha. “O recorte dos que têm ensino superior captura, por exemplo, informações do ciclo de vida educacional de um negro, toda a exclusão que faz com que muitos não cheguem lá.”
Apesar de ter nascido com a história colonial do Brasil e se estendido por cinco séculos, a exclusão mencionada por França começou a ocupar o centro do debate público apenas recentemente.
Os protestos que eclodiram após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio de 2020, aceleraram esse processo, mas o interesse dos brasileiros pelo tema parece ter começado um pouco antes.
O conceito de racismo estrutural, antes desconhecido ou ignorado por parte significativa da sociedade, passou a mobilizar mais o interesse de internautas do que a expressão democracia racial no fim de 2019 e o início de 2020.
“Quando dizemos que o racismo é estrutural, estamos dizendo que, se tudo acontecer em sua normalidade, o resultado será racista”, explica a psicóloga Lia Vainer Schucman, que pesquisa branquitude e relações raciais.
A tendência veio acompanhada por uma demanda por respostas para o fato de os negros serem, desproporcionalmente, afetados não apenas pela violência, mas também por desemprego, informalidade, pior acesso à saúde e à educação de qualidade.
Com o Ifer, a reportagem da Folha e os economistas que construíram sua metodologia não têm a pretensão de trazer conclusões sobre os complexos mecanismos que alimentam essa realidade.
Mas o índice pode permitir hipóteses tanto sobre as causas das diferenças nas desigualdades locais quanto sobre políticas e ações que explicam avanços e retrocessos das unidades da federação e regiões capturados pelo Ifer ao longo do tempo.
O Ifer revela contrastes como o registrado entre o Amapá e o Amazonas. Os dois têm alta proporção de negros na população: mais de 80% do total com 30 anos ou mais, ante 54% no Brasil. A renda per capita é baixa (respectivamente, R$ 880 e R$ 842, em 2019) e estão na mesma região.
No entanto, o Amapá é a única unidade da federação brasileira que, no índice, está próxima de um relativo equilíbrio entre brancos e negros, enquanto o Amazonas perde em desigualdade racial apenas para São Paulo, onde o desequilíbrio é mais que o dobro do registrado no Amapá.
“A vida em São Paulo pra quem é negro é muito difícil. As pessoas falam que o Brasil não é racista, que os Estados Unidos é. Mas o Brasil é um país racista em muitas coisas”, diz o entregador de aplicativo Rafael da Silva, 28.
Segundo o economista Helio Santos, ativista do movimento negro desde os anos 1970, a virulência com que o racismo se manifestou em países como os EUA e a África do Sul —com linchamentos e apartheid— se tornou sua fraqueza, já que é mais fácil combater o que é explícito do que práticas veladas na rotina.
O oposto é verdade aqui: “A força do racismo aqui na América Ibérica foi a maneira aparentemente branda com que ele veio, falando muito em miscigenação, mas miscigenação sem integração”, diz o economista.
Para Santos, a cultura ibérica tem duas características fortes: a dissimulação e a manutenção dos privilégios. “Quando você mistura os dois, tem o crime perfeito.”
A campanha iniciada pelo movimento negro nos anos 1930 foi longa, mas surtiu efeitos como a política de cotas raciais e sociais em universidades públicas e a conscientização de jovens sobre os limites que a discriminação impõe.
Para o entregador Silva, a pele escura explica desde olhares desconfiados que o seguem quando entra em um shopping ao envolvimento de seu irmão com o tráfico de drogas, que terminou com seu assassinato aos 15 anos, acentuando o problema de alcoolismo de sua mãe.
“Meu irmão era bem mais escuro do que eu, que sou pardo. Na escola, chamavam ele de neguinho. É lógico que ele entrou no caminho errado porque quis, mas a cor da pele contribuiu para muita coisa que ele passou. E acho que o mesmo aconteceu com minha mãe.”
A ciclovia por onde Silva anda em São Paulo ilustra a cor da desigualdade no Brasil: a maior parte dos negros que trafegam por ela está a serviço de aplicativos, e a maior parte dos brancos usa roupas esportivas ou traje social.
Apesar das muitas horas trabalhadas por dia, Silva diz ser grato às oportunidades que surgiram com os aplicativos de entrega , que lhe dão uma renda próxima a R$ 2.000 por mês.
“Não tiro folga e vivo exausto, mas os aplicativos me salvaram do desemprego”, afirma.
Corrigido pela inflação, o rendimento atual de Silva é um pouco inferior aos R$ 1.971 que os negros paulistas recebiam, em média, no estado de São Paulo, em 2019, ano mais recente da série do Ifer.
Em termos absolutos, o valor estava longe de ser dos piores: era a quarta maior renda (incluindo salário e demais rendimentos) estadual aferida por pretos e pardos ocupados no Brasil.
Mas a distância de 80% entre o R$ 1.971 e os R$ 3.552 recebidos, em média, pelos brancos paulistas faz de São Paulo o segundo estado mais desigual nesse quesito, perdendo apenas para o Amazonas.
Além disso, esses estados registram enorme descasamento entre a proporção de pretos e pardos que alcançam ou ultrapassam a renda que separa os brancos 10% mais ricos dos demais 90% e seu peso populacional.
É esse desequilíbrio que o Ifer mensura em suas três dimensões que são, posteriormente, consolidadas em um único indicador.
Os resultados individuais dos componentes do índice mostram que a exclusão dos negros é significativa no acesso ao ensino superior e, mais ainda, ao topo da pirâmide de renda.
No caso da sobrevida, a maior parte dos estados está em relativo equilíbrio racial. Isso, provavelmente, se deve ao fato de que a população analisada tem 30 anos ou mais, faixa etária na qual os negros passam a ser menos afetados por mazelas como a morte precoce por violência.
O cálculo do componente de sobrevida no Ifer é semelhante ao feito para a renda: extrai-se o grupo de brancos 10% mais idosos e calcula-se a idade que o separa dos demais 90%.
Em seguida, identifica-se quantos negros da mesma faixa etária atingem ou ultrapassam a idade de corte dos brancos mais longevos e calcula-se o quanto sua presença nesse grupo se aproxima de seu peso na população.
França, Firpo e Portella fizeram ainda outros exercícios, como mudar a linha de renda e idade para 20%. As reportagens desta série se baseiam no recorte de 10%, mas os números completos estão disponíveis no painel interativo criado para este projeto.
Os três economistas também acabam de publicar um trabalho sobre o Ifer.
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará seguem São Paulo e Amazonas como as UFs menos inclusivas, racialmente, do Brasil, mostra o Ifer. Na ponta oposta, ao lado do Amapá, Rondônia, Rio Grande do Norte, Goiás e Mato Grosso são as menos desiguais.
Embora o nível da exclusão vivida pelos negros varie bastante entre estados e regiões, o índice mostra que ela marca todos os cantos do Brasil.
A vasta maioria dos resultados aponta uma sub-representação dos negros —ou dominância branca— no acesso a melhores condições de vida capturadas pelas três dimensões do índice. O resultado do Brasil como um todo é -0,332.
Não há um número em toda a série histórica do Ifer, de 2012 a 2019, que aponte uma situação oposta, de sub-representação dos brancos (ou dominância negra).
Segundo Firpo, a lógica matemática por trás do índice é capturar a probabilidade de que a distribuição de dois grupos populacionais em certos contextos ou recortes tenha ocorrido ao acaso ou não.
“Quanto mais negativo for seu resultado, menor a chance de que isso tenha sido efeito do acaso”, diz o pesquisador.
Essa metodologia foi, inicialmente, desenvolvida por Firpo, França e o economista Lucas Rodrigues —que faz doutorado na USP— para medir as desigualdades na participação de negros e brancos no mercado de trabalho formal. A ideia deles era inspirada em um trabalho dos acadêmicos Roger Ransom e Richard Sutch sobre os Estados Unidos.
Ainda que a exclusão racial no país permaneça elevada, o Brasil evoluiu em combatê-la nos últimos anos.
O Ifer mostra que, entre as cinco regiões do país, apenas o Nordeste se tornou, racialmente, mais desigual na comparação entre a média móvel de três anos encerrada em 2019 e a terminada em 2014.
O Centro-Oeste foi a região que mais progrediu, tirando do Nordeste o posto de área geográfica com o menor desequilíbrio racial, pela metodologia do Ifer.
Das 27 unidades da federação, 17 reduziram seu nível de desigualdade no mesmo período, três estacionaram e sete recuaram.
O Amazonas foi a UF que mais reduziu sua disparidade, sobretudo pela queda da distância entre as duas raças no acesso ao ensino superior do estado. Ainda assim, permaneceu sendo o estado mais desigual nesse quesito.
O componente educacional do índice foi o principal responsável pela sua queda de forma agregada. Na dimensão da renda também houve progresso, embora mais restrito.
Já em termos de sobrevida, o Ifer piorou em vários estados, mas essa tendência pode estar capturando fatores demográficos e, não necessariamente, um aumento do descolamento na expectativa de vida entre negros e brancos. Segundo os economistas que desenharam o índice para a Folha, isso ficará mais claro conforme ele for atualizado nos próximos anos.
É possível que a peculiar demografia de um país altamente miscigenado como o Brasil também ajude a explicar outros efeitos exibidos no Ifer.
“Nós trabalhamos com dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] que se baseiam na autodeclaração da cor da pele. Sabemos que, no Brasil, tanto a composição racial da população quanto a dinâmica das relações criada por ela podem variar bastante”, diz Alysson Portella.
Os movimentos registrados por estados e regiões nas dimensões de educação, renda e sobrevida do Ifer, assim como a construção do conceito de raça no Brasil, serão abordados em outras reportagens nos próximos dias.
A equipe multirracial que desenvolve esse projeto também mapeou ações de combate ao racismo estrutural em nível nacional, nas 27 UFs e em alguns municípios, como Monte Alegre de Goiás.
O Ifer se restringe, por ora, à comparação entre brancos e negros devido à dificuldade de incluir indígenas e amarelos, que representam uma pequena fatia da população, nos cálculos que se baseiam na Pnad Contínua, pesquisa que usa dados amostrais. Também por esse motivo, optou-se por trabalhar com pretos e pardos agrupados.