Representante brasileira na OMS alertou governo sobre cloroquinas
Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil
A representação diplomática do Brasil junto à Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou, entre 1º de julho de 2020 e 5 de março deste ano, cinco comunicações ao governo federal sobre as discussões científicas em torno de medicamentos como a cloroquina para o tratamento da Covid-19. Todos os telegramas apontam a falta de eficácia ou ineficácia do remédio contra a doença.
Os documentos estão no acervo da CPI da Covid no Senado, que também contém telegramas informando que o Itamaraty atuou pelo menos 84 vezes no exterior para buscar o abastecimento de cloroquina ou insumos.
Eles tiveram o sigilo relaxado na última semana e trazem dezenas de comunicações diplomáticas assinadas por Maria Nazareth Farani Azevêdo, que hoje é cônsul do Brasil em Nova York, mas chefiou a representação do país junto à OMS ao longo da pandemia.
A primeira citação aos medicamentos que ainda hoje são defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como solução para a pandemia está em um telegrama do início de julho de 2020, que relata uma reunião de outra diplomata, a embaixadora Maria Luisa Escorel de Moraes, com o diretor executivo interino da organização Unitaid, Philippe Duneton.
Essa entidade, ao lado da Fundação Bill & Melinda Gates, criou uma iniciativa que promove o acesso de países a ferramentas para lidar com a pandemia, o Access for Covid-19 Tools (ACT) Accelerator.
Segundo o relato, o braço da iniciativa que trata da pesquisa com os medicamentos tinha, na época, duas apostas. A primeira, naqueles usados para tratar outras doenças sendo “reposicionados”, o que inclui a cloroquina e a hidroxicloroquina. A conclusão, então, era de que esses medicamentos “seriam mais fáceis de produzir em grande escala, mas que, no entanto, não teriam ainda demonstrado eficácia real”. A outra aposta era no desenvolvimento de novas drogas, específicas para o coronavírus.
Mais de um mês depois, em 10 de agosto de 2020, Maria Nazareth Azevêdo escreve ao governo federal, desta vez para relatar uma coletiva de imprensa da OMS. Ao responder a uma pergunta sobre o Brasil e a insistência de Bolsonaro no remédio, o diretor do Programa de Emergências da OMS, Mike Ryan, disse que a cloroquina “não seria uma solução nem uma bala de prata” e que “não haveria evidências científicas para uso, de acordo com os estudos científicos publicados”.
Duas semanas depois, em 24 de agosto, o assuntou voltou a ser debatido em outra coletiva de imprensa relatada pela diplomacia brasileira. Em resposta a uma jornalista indiana, a cientista-chefe da OMS, Sumya Swaminathan, “indicou que os ramos relativos ao uso de lopinavir/ritonavir e de hidroxicloroquina teriam sido descontinuados, devido à ausência de evidências sobre a eficácia daquelas moléculas”.
Nesse mesmo 24 de agosto de 2020, a diplomacia brasileira junto à OMS enviou ao Itamaraty relato sobre seminário promovido pela Federação Internacional das Associações de Indústrias Farmacêuticas (IFPMA, na sigla em inglês) “com o objetivo de compartilhar a percepção do setor privado farmacêutico sobre os esforços comuns para combater a pandemia de Covid-19”.
O comunicado lembra que a entidade “reúne as principais indústrias farmacêuticas de países desenvolvidos”.
Informa o telegrama que o diretor executivo da IFPMA, Thomas Cueni, disse sobre os tratamentos, na época, que “trata de começar do zero, tendo em conta o insucesso relacionado a alguns medicamentos que teriam despontado como promissores no início da pandemia. Citou, nesse contexto, a hidroxicloroquina – que qualificou de ineficaz”.
É o relato mais contundente sobre a ineficácia.
Em 7 de setembro, a diplomata envia mais um relato sobre coletiva de imprensa da OMS. Ela conta que no capítulo de perguntas e respostas, repórter do jornal O Globo perguntou o que a população deve fazer se confrontada com mensagens contraditórias, fazendo alusão a que, no Brasil, o senhor presidente da República é visto com frequência em ambientes públicos sem utilizar máscaras e defende uso de cloroquina.
Mike Ryan, o diretor do Programa de Emergências da OMS, relatou ela, disse que “seria bom” que os cidadãos pudessem confiar em fontes governamentais. Asseverou que confiança é algo que leva anos para ser construído, mas pode ser perdido em pouco tempo e que, caso as pessoas recebam informações manipuladas, pode haver efeito negativo, o que teria ocorrido em diversos países, em diferentes épocas.
Ele realçou ainda a importância da sinceridade para reconhecer erros e apontar o que se sabe e o que não se sabe, já que soluções simplificadas, a seu ver, muitas vezes não funcionam.
A diplomata Maria Nazareth Farani Azevêdo enviou também, no dia 7 de junho de 2020, um telegrama relatando que a OMS orientou os países que a melhor solução para a pandemia seria a vacinação.
Ela descreve uma apresentação feita pela cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, sobre estudos que indicariam que apenas proporção pequena da população teria desenvolvido anticorpos protetores para a enfermidade.
Segundo a embaixadora brasileira, a cientista avaliou que “nesse cenário, a melhor solução para criar imunização contra a pandemia seria vacinar quantidade suficiente de pessoas para quebrar a cadeia de transmissão”.
A convocação de Maria Nazareth Farani Azevêdo para a CPI da Covid foi pedida pelo senador Humberto Costa, do PT, no dia 7 de maio. Ele justificou que gostaria de ouvi-la sobre a resistência brasileira em aderir ao consórcio Covax Facility, coordenado pela OMS. O Brasil aderiu depois dessa resistência e contratou 42 milhões de doses para este ano, que já começaram a chegar, mas fez uma opção pela cota mínima.
A embaixadora tem destaque na política externa do governo Bolsonaro, e virou notícia no início de 2019 ao bater boca na ONU com o ex-deputado federal Jean Willys para defender o presidente. Ela chegou a ser cotada para substituir Ernesto Araújo no comando do Itamaraty quando ele caiu.