Coordenadora de vacinação se demite e acusa Bolsonaro
Foto: Andre Piccinini / Ministério da Saúde
Coordenadora do PNI (Programa Nacional de Imunizações) nos últimos dois anos, cargo do qual pediu demissão nesta semana, Francieli Fontana nega ter deixado o posto devido a pressões da CPI da Covid, atribui dificuldades na campanha à falta de doses e vê em declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prejuízos à estratégia de vacinação no país.
“Isso divide a opinião pública. Quando se tem certeza de que vacina é o meio mais efetivo para conter a epidemia, junto com as medidas não farmacológicas, e tem comunicação diferente do líder da nação, isso traz prejuízo para a campanha de vacinação”, afirma em entrevista à Folha.
Segundo ela, declarações de Bolsonaro que questionam a eficácia de vacinas colaboram para enfraquecer a confiança no programa, reconhecido por uma trajetória de sucesso nos últimos anos.
“Vimos que começou a haver dúvidas da própria população em relação à vacinação. Precisaríamos ter um comportamento que unificasse o país e uma comunicação única”, ressalta ela, que cita como exemplos de impactos a fala recente sobre desobrigar o uso de máscaras.
“Verificar uma fala do presidente da República de que vacinado já poderia deixar de usar a máscara é um cenário muito ruim para o Programa de Imunizações. Não vacinamos ainda quantitativo suficiente da população e estamos com número de casos expressivo”, aponta.
Um dia após comunicar a equipe sobre sua saída, Fontana, que é enfermeira, mestre em medicina tropical e servidora do ministério desde 2014, diz que a decisão de deixar o cargo foi tomada por conta própria e ocorreu devido a dificuldades para alavancar a campanha contra a Covid, situação que ela atribui a dois fatores: falta de vacinas e falta de apoio em ações de comunicação.
“Qualquer programa de vacinação no mundo, para ter sucesso, precisa de vacina e comunicação, e não tive nenhum dos dois”, afirma. “Solicitei diversas vezes uma comunicação em relação às ações de vacinação e pouquíssimas vezes fui atendida.”
Segundo ela, o ideal seria ter uma campanha publicitária que informasse sobre os grupos prioritários e a segurança e eficácia das vacinas de forma mais direta.
“Mas na gestão do [general Eduardo] Pazuello, dificilmente se conseguia uma comunicação. Eu entrava em contato com o núcleo de comunicação, que fazia contato com a assessoria, e não era explorado esse tema”, relata.
Outra dificuldade, afirma, foi a falta de doses suficientes para iniciar a campanha e dar ritmo mais acelerado à vacinação.
Questionada, ela evita se posicionar sobre uma demora em fechar contratos, afirmando que o PNI não participava das negociações. Mas diz que a equipe técnica do programa reforçou em notas técnicas a necessidade de aquisição de vacinas.
“As negociações de contratos não eram feitas com o Programa Nacional de Imunizações. Quem fazia era a secretaria-executiva. Participávamos de reuniões como área técnica para ver características da vacina e em que fase os estudos clínicos estavam, mas não participávamos do processo de fechar os contratos”, afirma. “Mas o PNI apontou desde o começo a necessidade.”
O primeiro desses posicionamentos, relata, ocorreu em 19 de junho de 2020, em documento que apontava a necessidade de 141 milhões a 242 milhões de doses para iniciar a estratégia de vacinação. “A ideia era começar já com esse quantitativo”, aponta ela, que lembra que na época não havia definição se as vacinas a serem usadas teriam uma ou duas doses.
Ainda segundo Fontana, a necessidade de que houvesse doses disponíveis em maior escala foi reiterada ao longo dos meses.
Análises do programa, afirma, também não apontavam restrição a algum tipo de vacina ou fornecedor —ela cita como exemplo a Pfizer, que já constava da previsão de plano de vacinação em dezembro, antes do contrato ser fechado.
“O que tínhamos de exigência é que toda vacina precisava passar pelo aval da Anvisa. Passando pelos critérios de segurança, de eficácia, a vacina era muito bem-vinda no PNI.”
A falta de doses, no entanto, impactou o planejamento da estratégia de vacinação.
“Os grupos prioritários foram definidos por não haver um quantitativo definido e já comprado de doses para poder iniciar o trabalho. Se tivesse quantidade de dose maior, não precisaria fazer essa fragmentação em vários grupos.”
Ainda na entrevista, Fontana negou que o programa de vacinação tenha cedido a pressões de categorias para inclusão de grupos prioritários nos últimos meses.
Ela conta que uma dessas tentativas de interferência, no entanto, ocorreu dentro da pasta em dezembro do último ano, quando o PNI recebeu pedido para adiar a previsão de vacinação da população privada de liberdade.
“Fui para uma reunião na secretaria-executiva em dezembro e teve essa pressão. O que se ouvia é que o presidente da República queria que fosse posterior.”
À época, uma versão do plano sem esse grupo chegou a ser divulgado pelo Ministério da Saúde. Segundo Fontana, no entanto, o PNI nunca mudou de posicionamento.
“Falei: se querem emitir outra versão, podem emitir. Mas a versão que o PNI vai emitir é com a população privada de liberdade”, diz ela, segundo quem o documento divulgado na época, e revisto em seguida, não era o aprovado pelo programa.
Esse, no entanto, não foi o único impasse vivido na campanha de vacinação nos últimos meses, que teve previsões revistas no cronograma de doses e adoção de grupos diferentes entre os estados.
Dificuldades na obtenção de insumos e ajustes na produção, afirma, levaram ao primeiro cenário. Já o segundo, aponta ela, é efeito de uma “guerra política” e da dificuldade na comunicação.
“Fiz o máximo do esforço para pelo menos manter uma comunicação efetiva com os coordenadores estaduais de vacinação. Mas, por essa politização, vimos que cada gestor começou a tomar uma decisão diferente”, relata.
“Recomendamos [aos estados e municípios] que seguissem os grupos prioritários. Mas faltou comunicação para que todo mundo seguisse a mesma estratégia. Os gestores foram tomando decisões porque, embora o PNI seja um programa de Estado, não de governo, houve interferências no nível alto da gestão para que essa coordenação não ocorresse de forma efetiva.”
Alvo de quebra de sigilo telefônico pela CPI da Covid, ela nega que a pressão gerada pela situação tenha colaborado para sua saída do cargo.
“O que muitos falaram, de que eu não queria ir para a CPI, não é verdade. Como a vacina está em grande evidência, nunca achei que não ia ser chamada. Disseram que fiquei desesperada, mas estou com todos os documentos organizados.”
Ela reclama, porém, de ter sido alvo de medidas antes de prestar depoimento. “Me passaram da condição de testemunha a investigada sem nem me ouvir.”
Atualmente, Fontana é alvo de um requerimento para acareação com a médica Luana Araújo sobre recomendações adotadas para a vacinação de gestantes no país, caso de intercambialidade de doses, ação que chegou a ser orientada pelo ministério para aquelas que tomaram doses da AstraZeneca e foi revista logo em seguida.
“Jamais tomei qualquer decisão no PNI sem uma discussão ampla”, afirma a ex-coordenadora.
À Folha ela também rebate um dos argumentos adotados para quebra do sigilo: a suspeita de que o filho do secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, a quem ela era subordinada, teria furado a fila de vacinação na Paraíba. “Não sabia nem que o filho dele era médico”, diz.
Ela diz ver no depoimento na CPI pode ser uma “oportunidade” de divulgar o programa de imunizações.
“Quero mostrar que o programa sempre agiu tecnicamente com base em ciência e evidência. Não sou indicação política, sou indicação técnica. Fiz o que pude dentro das condições que me foram dadas.”
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