Militares participaram da criação da urna eletrônica
Foto: Dida Sampaio/Estadão
Sob ataque do presidente Jair Bolsonaro, a urna eletrônica teve, entre os seus inventores, militares das Forças Armadas. A máquina, que neste ano completa 25 anos, enterrou um passado de constantes denúncias de fraudes na votação com cédulas de papel. Nesta sexta-feira, 16, porém, a integridade do equipamento será tema de decisão na Câmara. Uma comissão que analisa a Proposta de Emenda à Constituição 135/19, que institui o voto impresso, se reúne às 15 horas para votar um parecer que pede a adoção do voto impresso. A tendência é de que esse pedido seja rejeitado pela maioria.
O Estadão levantou a lista dos inventores do equipamento que se tornou símbolo do mais longevo período democrático. A apuração aponta a participação de oficiais da Aeronáutica, da Marinha e do Exército na criação da tecnologia.
Convocados a pedido do ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Velloso, engenheiros dos três contingentes militares estiveram diretamente ligados ao desenvolvimento do projeto entre 1995 e o verão de 1996. A contribuição militar, todavia, é ofuscada pelo próprio TSE na seção do site que conta a história do dispositivo. A única menção aos militares é sobre o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), entidade de pesquisa das Forças Armadas localizada em São José dos Campos.
Hoje em Portugal para acompanhar a esposa em uma temporada de estudos e desenvolver a pesquisa do tão sonhado doutorado na Universidade de Évora, Luiz Otávio Botelho, capitão de corveta no período em que colaborou com a criação da urna, foi o representante da Marinha no projeto. Responsável por desenvolver o teclado, o monitor e o algoritmo de votação da urna, ele diz que a sua participação no projeto foi estritamente técnica e que nunca foi procurado por superiores para comentar sobre a elaboração do dispositivo.
Em 1998, Luiz Otávio assinou um termo de cessão dos direitos autorais ao TSE pela criação da urna. Em conversa com a reportagem, ele defende o papel da informatização na melhoria do sistema eleitoral brasileiro e diz que o dispositivo tornou as eleições mais confiáveis. “Essa foi uma grande contribuição, não só das Forças Armadas, mas de todos aqueles que participaram do projeto de melhoria do processo eleitoral com o intuito de torná-lo mais aberto” afirma.
O militar hoje na reserva relata que a preocupação da equipe de criadores da urna era acabar com a demora na contagem dos votos. “Foi um grande passo naquele momento, que tinha uma apuração extremamente lenta e complexa. O Brasil avançou bastante em relação a outros países”, avalia. “O nosso processo se tornou muito mais limpo, rápido e preciso. A urna é um computador como qualquer outro. Ela apenas coleta os dados de um processo muito maior”, ressalta. “Tivemos a preocupação de torná-la a mais segura possível e minimizar qualquer problema de tentativa de burlar o sistema. Queríamos que ela fosse decente e confiável.”
É recorrente entre os participantes do processo que modernizou o sistema eleitoral condicionar as Forças Armadas à uma colaboração com quadros técnicos, sem maiores exigências ou intromissões no poder da Justiça Eleitoral para guiar o procedimento de elaboração do projeto. Não é bem assim. Os engenheiros militares contribuíram na execução de um sonho nacional por eleições mais limpas desde as tumultuadas disputas entre liberais e conservadores no Império e do voto de cabresto da República Velha. O envolvimento dos militares na reestruturação do sistema de votação do país aconteceu dez anos depois do fim da ditadura militar, que vigorou durante 21 anos. A colaboração de quadros militares notadamente destacados e expertise reconhecida na área tecnológica, em certa medida, conferiu credibilidade ao dispositivo em desenvolvimento.
Ataques. No dia 8 deste mês, mesmo dia em que registrou recorde de impopularidade, o presidente Jair Bolsonaro subiu o tom e fez novas ameaças ao modelo de votação brasileiro. Os ataques se repetiram no dia seguinte, dessa vez, porém, com insultos ao atual presidente do TSE, Luis Roberto Barroso, chamado de “imbecil” pelo chefe do Executivo. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, disse a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada. Ele é defensor do Projeto de Emenda à Constituição (PEC) em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que pede a impressão dos votos computados, a fim de auditá-los mais uma vez em caso de descontentamento com o resultado das eleições. O atual modelo da urna já possui mecanismos de auditagem.
Os comandantes das três forças (Exército, Marinha e Aeronáutica), como determina o regramento militar, nunca se posicionaram de forma objetiva sobre o atual modelo eleitoral. Atualmente, as Forças Armadas contam com cinco militares de alta patente no primeiro escalão do governo e 6.157 membros em cargos civis da administração pública federal. Os dados são de um relatório de 2020 do Tribunal de Contas da União (TCU).
Em conversa privada com o Estadão, um ministro do Supremo Tribunal Federal com passagem na presidência do TSE relatou que, na corte, prevalece o entendimento dos anos 1990 de que a urna eletrônica é o instrumento máximo de combate a fraudes eleitorais. Segundo o magistrado, o plenário do STF derrubará qualquer proposta de voto impresso que passe pelo crivo do Legislativo. A maioria do colegiado compreende que a impressão do comprovante é inconstitucional porque viola o sigilo do voto.
“Dependendo da forma como o voto impresso for aprovado, seria o recibo para o cacique político reclamar do seu eleitor. Seria a volta do voto de cabresto. O eleitor perderia a independência que o voto secreto lhe deu”, afirma Carlos Velloso, o ex-ministro do STF.
Era carnaval de 1996 quando o grupo de trabalho formado por técnicos de renomados laboratórios, tribunais eleitorais e das Forças Armadas finalizou o protótipo da urna eletrônica e encaminhou o projeto para o TSE dar início ao processo de licitação que replicou em larga escala o novo modelo de votação brasileiro.
Naquele mesmo ano, cerca de 32 milhões de brasileiros digitaram pela primeira vez os números correspondentes às legendas de seus candidatos e escutaram o som da confirmação do voto, que ecoa na seção eleitoral. Na eleição municipal de 2000, todos os eleitores já haviam dado adeus aos votos em cédulas de papel. Aos 25 anos, em 2021, a urna eletrônica se consolidou como modelo de votação e levou o Brasil a ser vitrine internacional dessa experiência. Porém, não sem enfrentar resistência e contestação quanto a sua confiabilidade, inclusive por parte do presidente em exercício – eleito com mais de 55 milhões de votos apurados por este sistema.
À época em que foi idealizada pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, presidente do TSE no biênio de 1994 a 1996, a urna eletrônica tinha como principal razão de existir o combate às fraudes eleitorais amplas e reincidentes no país. “Cheguei à conclusão junto com o ex-ministro (Sepúlveda) Pertence de que era preciso afastar a mão humana da apuração para evitar erros e a solução seria a informatização”, diz Velloso.
Um dos últimos casos de fraude eleitoral ocorreu nas disputas por cargos de deputado estadual e federal nas eleições de 1994 no Rio de Janeiro. O pleito em cédula de papel acabou anulado devido ao alto número de inconsistências nos votos. Dois anos depois, a Justiça Federal reverteu a decisão reconhecendo a legitimidade do resultado inicial – quando alguns dos eleitos já haviam perdido o cargo. Bolsonaro foi o terceiro deputado federal mais votado do estado naquele ano e não foi beneficiado pelas fraudes, mas observou colegas eleitos serem destituídos com a realização de nova votação.
Em resposta aos erros e fraudes recorrentes, Velloso convocou intelectuais das áreas de ciência política, direito e ciência da computação para que fosse estruturado o processo de informatização do voto. A reunião de nomes como Miguel Reale, Ives Gandra, Cármen Lúcia – professora de direito constitucional na época -, entre outros, fez com que os colaboradores fossem chamados de “grupo de notáveis”.
Foram eles os responsáveis por oferecer as diretrizes para a comissão técnica elaborar o protótipo do modelo da urna e executar os códigos de criptografia. A pedido do ministro Velloso, o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE) cedeu três profissionais ao projeto (Ézio Salgado, Mauro Hashioka e Paulo Nakaya), o Instituto de Estudos Avançados da Aeronáutica mais um (Oswaldo Catsumi), assim como o Exército (Major Elifas Amaral), a Marinha (Luis Otávio Botelho), a empresa estatal Telebras (Antônio Milan) e os Tribunais Regionais Eleitorais de Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (Roberto Siqueira, Gilberto Circunde, Roberto Fonseca, Célio Assumpção, Mário Colaço, Jorge Freitas).
Diante do anúncio de que o Brasil iria informatizar o sistema eleitoral, diversas empresas internacionais passaram a procurar o TSE para oferecer os seus produtos, mas o presidente Carlos Velloso defendeu a criação de um produto nacional. “Os preços eram altíssimos e ofereciam urnas eletrônicas do tamanho de uma geladeira. Diante disso, eu dizia que o Brasil precisava ter uma urna que fosse segura e barata, então optamos por adotar o teclado do telefone – todo mundo sabe telefonar”, afirma.
Para a cientista política e professora Isabel Veloso, da FGV-Direito (Rio), a insistência do atual governo em aprovar a pauta do voto impresso e a urgência com que trata o tema deve ser observada como um sinal de alerta. “Receio que o não atendimento dessa demanda até 2022 possa ser usado para questionar o resultado das urnas, tanto é que esse debate vem se intensificando a medida em que as taxas de reprovação do governo aumentam. Naturalmente, o resultado pode ser semelhante àquele que se observou no Capitólio após a derrota de Donald Trump: fiéis apoiadores insatisfeitos com o resultado das urnas e inflamados pela desinformação”, afirma.
Pesquisa de opinião realizada pela Confederação Nacional de Transporte (CNT) no início deste mês aponta que 64% dos entrevistados dizem ter confiança elevada ou moderada na urna eletrônica. A alta taxa de confiabilidade, porém, não diminui a adesão dos eleitores à pauta do voto impresso: cerca de 58% dos entrevistados dizem ser a favor, contra apenas 35% que se dizem contrários ao projeto de lei.
Apesar de a opinião pública defender o voto impresso, o atual ministro do TSE, Luis Roberto Barroso, rechaça a impressão e argumenta contra o projeto apontando o alto custo de implementação das impressoras, a logística de transporte dos comprovantes, o armazenamento dos votos, o forte esquema de segurança e a possibilidade de fraude na contagem manual, dentre outros problemas oriundos do envolvimento humano na apuração. Atualmente, a urna já conta com diversas formas de auditagem sob domínio dos partidos, observadores externos e cidadãos.
“O manuseio do voto sem filmagem nos reconduz ao filme de terror que nós vivíamos antes. O manuseio humano sempre foi o foco de todas as fraudes. A história brasileira com o voto em papel é uma história trágica”, afirmou o ministro Barroso em palestra na terça-feira, 6.
O posicionamento do ministro insuflou o presidente Jair Bolsonaro a produzir uma nova onda de ataques às urnas eletrônicas e, dessa vez, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Em resposta a Bolsonaro, o presidente do STF, Luiz Fux, emitiu uma nota contra os disparos do presidente da República ao sistema eleitoral eletrônico. “O Supremo Tribunal Federal ressalta que a liberdade de expressão, assegurada pela Constituição a qualquer brasileiro, deve conviver com o respeito às instituições e à honra de seus integrantes, como decorrência imediata da harmonia e da independência entre os poderes”, diz a nota.
A crise recente é só mais uma do vasto histórico de Jair Bolsonaro, que, ao lado de deputados governistas, tensiona a relação com outros poderes na tentativa de encampar o discurso de fraude nas eleições. Desde 2020, ele afirma que irá provar que houve fraude na eleição de 2018, na qual saiu vencedor. O presidente, porém, nunca apresentou as supostas evidências de que teria sido eleito ainda em primeiro turno.
Em outra cruzada mais recente, Bolsonaro disse que, sem o voto impresso, não irá transmitir a faixa ao sucessor em caso de derrota nas eleições de 2022. “Eu entrego a faixa presidencial para qualquer um que ganhar de mim na urna de forma limpa. Na fraude, não. Vamos para o voto auditável. Esse voto ‘mandrake’ aí não vai dar certo. Nós vamos ter um problema seriíssimo no Brasil”, disse em live.
Para o ministro Luis Roberto Barroso, quaisquer tentativas de obstruir a votação de 2022 podem levar ao enquadramento na Lei de Impeachment. Já Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Congresso, declarou que não aceitará ataques à democracia. “A realização de eleições, na data prevista na Constituição, é pressuposto do regime democrático. Qualquer atuação no sentido de impedir a sua ocorrência viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade”, afirmou o presidente do TSE, em nota emitida no dia 9.
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