Proselitismo religioso infesta CPI
Foto: Adriano Machado/Reuters
Prescreve o Antigo Testamento, ao elencar os dez mandamentos que Moisés teria recebido no Monte Sinai, sobre não falar o nome de Deus em vão. Até a semana passada, 42 pessoas o citaram 184 vezes na CPI da Covid do Senado.
A conta exclui expressões populares “meu Deus” e “pelo amor de Deus”, também numerosas.
A religiosidade cristã apareceu em todas as sessões da CPI até aqui, a começar pelo primeiro encontro dos senadores que investigam se o governo Jair Bolsonaro cometeu crimes ao lidar com pandemia de Covid-19 no país.
“Invocando a proteção de Deus, declaro aberta a sessão para eleição”, disse, no 27 de abril, Otto Alencar (PSD-BA), septuagenário que, por ser o mais velho do colegiado, conduziu os trabalhos do dia 1 da CPI.
Desde então, a comissão acumula ao menos 427 menções a palavras-chave do segmento cristão, proferidas por 49 pessoas, entre convidados, convocados e senadores. A pedido da Folha, o Lagom Data fez o levantamento a partir de termos como Deus, Bíblia, Jesus e Escrituras.
Não ficam contemplados dois religiosos que figuram como coadjuvantes da CPI. No dia 20 de maio, Flavio Bolsonaro (Patriota-RJ) afirmou que o pastor Silas Malafaia era conselheiro do pai e sugeriu convocá-lo, o que seria declinado por colegas.
Parte da reunião de 1º de julho se dedicou ao reverendo Amilton Gomes de Paula. Ele preside a ONG Senah e teria apresentado o PM e vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominguetti Pereira a representantes do governo federal.
O policial afirmou à Folha e depois à comissão que um diretor do Ministério da Saúde lhe ofereceu propina de US$ 1 por dose para a compra de vacinas contra a Covid-19.
A sessão de 30 de junho foi onde a tônica religiosa mais deu as caras. No princípio foi o verbo escrito, e não falado: o depoente da vez, o empresário Carlos Wizard, chegou ao Congresso com uma plaquinha que trazia as coordenadas para o versículo Isaias 41:10 sobre um fundo azul com nuvens brancas.
Diz este trecho bíblico: “Por isso não tema, pois estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o ajudarei; eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa”.
Antes de responder com silêncio a todas as perguntas feitas por senadores, direito garantido por um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal, ele fez uma introdução de 17 minutos encharcada de referências à sua fé.
Contou, por exemplo, que em 2018 ele, a esposa e os dois filhos, “inspirados por duas passagens bíblicas”, tomaram “uma decisão radical na nossa vida” —a decisão de ser uma “família missionária”.
A quem interessar possa, os excertos eram Josué 24:15 (“eu, em minha casa, serviremos ao Senhor”) e Romanos 1:16 (“eu não me envergonho do Evangelho de Jesus Cristo, pois Ele é o poder para a salvação, para todo aquele que nele crê, tanto do judeu como do grego”).
Dois senadores usaram a mesma Bíblia para rebater Wizard, suspeito de coordenar um gabinete paralelo que defendeu tratamentos sem baliza científica para tratar a Covid-19.
Randolfe Rodrigues (Rede-AP) lembrou a própria religião e a de pares.
“O senador Girão é espírita, a senadora Eliziane é evangélica, eu sou católico. Comecei a minha trajetória, inclusive, formado na Igreja Católica, nas comunidades eclesiais de base, na Pastoral da Juventude, o anel de tucum que eu uso é por conta disso.”
Em seguida, disse ter aprendido que a palavra de Deus “não é monopólio de ninguém” e destacou outro trecho bíblico.
“Mateus 7:15 diz o seguinte: ‘Cuidado com os falsos profetas: eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro, ou figos de ervas daninhas?’ Passagem de Mateus citando a passagem de Cristo conosco.”
Também oposição a Bolsonaro, Eliziane Gama (Cidadania-MA) foi o membro da CPI que mais trouxe Jesus ao debate (20 vezes). Disse que Wizard “leu passagens bíblicas muito bonitas” antes de lhe perguntar qual era sua religião.
O empresário bolsonarista voltou a dizer que ficaria calado. “Mas o senhor não pode nem dizer qual é a sua religião?”, devolveu Gama. A senadora cravou na sequência: “A informação que eu tenho é que o senhor é da igreja dos mórmons, é mórmon, não é isso?”.
Ela tinha um ponto. A essência de Jesus Cristo, diz, “era amor aos pobres, aos excluídos”.
E o que fez Wizard? “O senhor tem noção do que a sua orientação, as suas lives, as suas informações acerca do incentivo, por exemplo, do uso da hidroxicloroquina, do que que isso resultou para a vida dessas pessoas? […] As pessoas, de fato, morreram. E a comercialização dessas empresas, senhor Wizard? Ela teve um aumento de mais de 60% no seu faturamento! Algumas chegaram a ter um faturamento anual de mais de R$1 bilhão! O senhor tem noção?”
Mais uma vez, Wizard emudeceu.
Restou ouvir mais alusões a valores cristãos, que ao longo da CPI também despontaram na forma de interjeições do léxico popular. A mesa do colegiado é quem mais profere “pelo amor de Deus” e “meu Deus”.
Omar Aziz (PSD-AM), presidente, e Renan Calheiros (MDB-AL), relator, recorreram às duas repetidas vezes no dia 12 de maio, irritados com as evasivas de Fabio Wajngarten. O ex-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação Social) resistia a implicar Bolsonaro em atitudes relapsas na pandemia.
Cinco dias depois, Omar voltou a se enervar com um depoente, desta vez Ernesto Araújo. O presidente teve de lembrar que o ex-chanceler já havia falado em “comunavírus” quando ele disse não recordar de ter alguma vez feito uma declaração antichinesa.
O senador amazonense terminou aquela sessão desejando a Ernesto: “Que Deus possa te abençoar nesta caminhada. Tomara que dê tudo certo para o Brasil”. Pelo amor de Deus.
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