Tunisia sofre golpe militarizado
Foto: Fethi Belaid/AFP
Após suspender o Parlamento e destituir o primeiro-ministro do país, o governo da Tunísia colocou tropas militares nas ruas para conter manifestações e decretou toque de recolher em algumas cidades.
O presidente Kais Saied foi acusado de golpe no domingo (25) depois de suspender o Legislativo por 30 dias, destituir o primeiro-ministro Hichem Mechichi e assumir plenos poderes pelo Executivo —a Tunísia funciona em um sistema parlamentar misto em que cabe ao presidente apenas as funções diplomáticas e militares, e o país é governado pelo primeiro-ministro.
Desde a noite de domingo, manifestantes saíram às ruas e houve confronto em frente ao Parlamento entre apoiadores e opositores de Saied, com pessoas feridas após serem atingidas por pedras e garrafas. Manifestantes favoráveis ao presidente lançaram fogos de artifícios e fizeram carreatas pela capital Túnis.
Pela manhã, o exército cercou a sede da Presidência (a Kasbah), e impediu mesmo a entrada de funcionários. A rede de TV Al Jazeera, que tem sede no Qatar, afirmou nesta segunda (26) que a polícia invadiu seu escritório na capital tunisiana e expulsou todos os funcionários.
Em meio a crise, o governo baixou novas medidas de contenção contra a Covid-19 —o anúncio foi visto como uma tentativa de conter os protestos. Entre outras ações, o Executivo decretou um toque de recolher que se estenderá por um mês, até o dia 27 de agosto, com proibição de circulação à noite, entre as 19h e as 6h da manhã, com exceção para emergências e trabalhadores noturnos. Também estão proibidas a circulação de veículos entre uma cidade e outra e não é permitido reunir mais de três pessoas em vias ou praças públicas.
Mechichi se pronunciou sobre a crise pela primeira vez nesta segunda (26), afirmando que irá colaborar com o futuro chefe do governo. “Garantirei a transferência de poderes ao dirigente que for nomeado pelo presidente da República.”
Esta é a crise política mais grave em uma década no país berço da Primavera Árabe, série de protestos que sacudiu o norte da África e o Oriente Médio a partir do fim de 2010. A Tunísia é considerada o exemplo mais bem sucedido daquelas revoluções. Na ocasião, os manifestantes conseguiram tirar do poder o então ditador Zine el-Abidine Ben Ali e mudar o sistema político do país, com uma nova Constituição em 2014 que estabeleceu a divisão de poderes entre o presidente, o primeiro-ministro e o Parlamento.
Agora no comando do Executivo, Saied já começou a fazer mudanças no governo. Nesta segunda, ele afirmou que vai trocar os ministros da Justiça e da Defesa e nomeou o diretor-geral da unidade de segurança presidencial, Khaled Yahyaoui, como supervisor do Ministro do Interior.
Em sua página no Facebook, o Ennahda, partido de orientação islâmica que tem a maior bancada do Parlamento, escreveu que “o que Kais Saied está fazendo é um golpe de Estado contra a revolução e a Constituição, e os membros do Ennahda e o povo da Tunísia defenderão a revolução”.
Em vídeo publicado pela página da Presidência, Saied negou que tenha cometido um golpe, afirmou que os opositores precisam “estudar novamente a Constituição” e pediu que os tunisianos mantenham a calma e não caiam em provocações, acrescentando que “o maior perigo que uma nação pode enfrentar é sua explosão interna.”
Segundo o presidente, suas medidas estão asseguradas pelo artigo 80 da Constituição. O artigo não fala que o presidente pode suspender o Parlamento, mas diz que em caso de “perigo iminente que ameaça a integridade do país e sua independência e segurança, [o presidente] pode tomar medidas necessárias para essa situação excepcional”, com a condição de consultar o primeiro-ministro e o chefe do Legislativo.
O líder do Ennahda presidente do Legislativo, Rashed Ghannouchi, tentou entrar nesta segunda com outros deputados na sede do Parlamento e foi impedido por militares, de acordo com um vídeo divulgado pelo partido na rede social.
“O Exército deve proteger o país”, disse Ghannouchi aos soldados, no vídeo. “Soldados, oficiais, pedimos que fiquem ao lado do povo”, completou. “Somos militares, cumprimos ordens. Nos pediram para fechar o Parlamento”, respondeu um dos soldados.
A vice-presidente da Assembleia, Samira Chaouachi, também pediu que os militares abrissem as portas. “Queremos entrar no Parlamento”, gritou. “Somos os protetores da Constituição.” Um dos soldados respondeu: “Nós somos os protetores da nação.”
Em comunicado divulgado pelo Ennahda, Ghannouchi afirmou que Saied tenta mudar o regime político do país, “transformando um regime democrático parlamentarista em um regime presidencial, individual e autoritário.”
Além do Ennahda, o movimento islâmico-nacionalista Karama também condenou a decisão de Saied. A Corrente Democrática, partido social-democrata que apoia o presidente, também rechaçou o ato, mas creditou o problema à “tensão popular e à crise social, econômica e sanitária e à falta de horizontes da coalizão no poder comandada pelo Ennahda.”
A suspensão do Parlamento é o ponto culminante de uma crise política que se estende há seis meses, com Saied, Ghannouchi e o primeiro-ministro Mechichi em constante conflito, o que paralisou o governo em meio à alta de contágios de Covid-19.
Com quase 18 mil mortos pelo coronavírus, a Tunísia, que tem 12 milhões de habitantes, tem uma das piores taxas de mortalidade do mundo. Pesa também a crise econômica, com problemas constantes desde a Primavera Árabe —no ano passado, a economia do país sofreu uma retração de 8%.
Saied é considerado um outsider no sistema político e foi eleito em 2019 com um discurso anti-corrupção. Em seu apoio, milhares de tunisianos foram às ruas contra a classe política do país no domingo (25), antes da suspensão do Parlamento.
Os manifestantes protestavam principalmente contra o Ennahda. Entre os gritos ouvidos nos protestos, marcados por críticas ao primeiro-ministro Mechichi, os manifestantes bradavam “Vamos mudar de regime” e “O povo quer a dissolução do Parlamento”.
A suspensão do Parlamento ensejou reações de outros países. O governo da Turquia, próximo do Ennahda, pediu a restauração da “legitimidade democrática no país.”
Já a Liga Árabe, que reúne países árabes da África e do Oriente Médio, pediu em comunicado que a Tunísia “supere rapidamente a atual fase turbulenta, restaure a estabilidade, a calma e a capacidade do estado de trabalhar de forma eficaz para responder às aspirações e necessidades do povo.”
A Casa Branca pediu “calma e apoio aos esforços de seguir em frente com princípios democráticos”. Na União Europeia, uma porta-voz da Comissão Europeia pediu que os políticos tunisianos respeitem a Constituição e o Estado de Direito, e que “mantenham a calma e evitem usar a violência, para preservar a estabilidade do país”.
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