Vendedores de vacina inventaram proximidade com Lula
Foto: Reprodução
O grupo de vendedores informais de vacinas que negociou com o governo federal mirava a entrega de mais de 1 bilhão de doses e citava acesso ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
As menções às autoridades estão registradas em mensagens de celular do policial militar Luiz Paulo Dominghetti, recolhidas pela CPI da Covid, mas eram vistas como blefes por parte dos próprios comerciantes.
Em plena disputa global por imunizantes, o militar que denunciou suposto pedido de propina no governo federal participou de negociações de pelo menos quatro marcas: Astrazeneca, Coronavac, Sputnik e Janssen.
As ofertas eram apresentadas em papéis de empresas que não têm aval das fabricantes, como a Davati Medical Supply.
Apesar de caricatas, as negociações chegaram à cúpula da Saúde, motivaram duas demissões na pasta, após a Folha revelar o caso, e constrangeram líderes do governo Jair Bolsonaro na CPI da Covid.
Os diálogos guardados pela CPI citam suposto envolvimento de Bolsonaro nas tratativas em pelo menos sete dias distintos, mas não há indícios de que o mandatário sabia do grupo de Dominghetti. Já Michelle é mencionada uma vez, em 3 de março, quando o PM disse a um colega que a primeira-dama “está no circuito”.
As conversas do grupo de Dominghetti com o governo federal foram facilitadas por militares e nomes ligados à Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), ONG evangélica que prometia disparar as ofertas de vacina pelo mundo.
Pessoas ligadas à ONG disseram a Dominghetti, em mensagens de celular, que o reverendo Amilton Gomes de Paula, presidente da entidade, esteve com Bolsonaro em 15 de março. Nesta data, o mandatário recebeu líderes religiosos.
Bolsonaro afirmou a jornalistas, em 12 de julho, que não se lembra do reverendo. “Se eu vi a cara dele, pode ser que eu lembre de algum lugar. Mas não estou lembrando dele aqui”, afirmou.
Não há nos diálogos de Dominghetti prova do encontro, como fotos. O próprio reverendo se contradiz sobre o acesso ao presidente.
Ao policial militar, Amilton afirmou, em 16 de março, que esteve com “quem manda”, mas ele negou à TV Globo que tratou de vacinas ou ao menos se encontrou com Bolsonaro.
Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou sobre as conversas de Dominghetti.
O policial militar disse à Folha, em 29 de junho, que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose do ex-diretor de Logística da Saúde Roberto Ferreira Dias para negociar 400 milhões de vacinas da AstraZeneca. A oferta teria sido feita em 25 de fevereiro, durante um jantar em Brasília.
Dias foi exonerado no dia da publicação da entrevista. Ele confirmou à comissão do Senado o jantar, negou o pedido de propina, e chamou Dominghetti de “aventureiro” e “picareta”.
O grupo majoritário da comissão avalia que o Ministério da Saúde abriu as portas para um esquema mambembe de negociação com intermediários, enquanto rejeitava ofertas feitas por fabricantes como a Pfizer.
Os vendedores especulavam volumes de vendas incompatíveis com a produção global de imunizantes. Em 20 de fevereiro, o policial disse a um colega que iria para Brasília para “afinar esse spot de 1,3 bilhão de vacinas”, sendo 400 milhões ao governo brasileiro.
Os diálogos de Dominghetti mostram ainda que as negociações não tinham fronteira ou cor partidária. Além do governo Bolsonaro, o grupo menciona que tentou vendas a governadores, prefeitos, Venezuela, Bolívia, Angola, Honduras e Paraguai.
Em pelo menos três ocasiões o grupo cita a ideia de negociar com o Instituto Lula, que disse à Folha não ter discutido a compra de vacinas.
Em 18 de março, uma pessoa ligada à Senah, registrada como Amauri Vacinas Embaixada, disse a Dominghetti que o Instituto Lula teria reunião com a ONG para “aquisição de todo lote da vacina”. “Dependendo da reunião, o Lula vai anunciar a compra hoje”, disse Amauri.
“Misericórdia. Vou sentar na TV. E ficar só olhando o circo pegar fogo”, respondeu Dominghetti.
Os diálogos entre o grupo de comerciantes ainda são repletos de blefes e bravatas. Em diversas ocasiões, eles dizem que compras bilionárias estão quase fechadas, mas, na prática, não há sinal de qualquer desfecho positivo das tratativas.
Dominghetti afirmou a seu pai, em 25 de fevereiro, data do jantar do suposto pedido de propina, que havia fechado um grande negócio com a Arábia Saudita e que à noite faria o mesmo com o Ministério da Saúde.
O pai também pergunta se Dias é “gente boa”. “Espetacular”, responde o policial, que meses depois o acusaria de cobrar propina.
Já em 8 de março, “Amauri” cita o presidente Bolsonaro para cobrar de Dominghetti documentos da oferta da AstraZeneca. “O Bolsonaro está pedindo. Agora. Para comprar”, disse Amauri. “Agora. Para comprar.”
As mensagens mostram que o cabo da PM dizia acreditar que estava cercado de grandes executivos. Ele chega a dizer a um colega que Cristiano Carvalho, um dos líderes das negociações da Davati no Brasil, era milionário.
À CPI, porém, Cristiano revelou que pediu auxílio emergencial do governo em 2020 e disse que tinha um vínculo precário de representação da empresa. Na mesma comissão, Dominghetti havia dito que Cristiano era chefe da companhia no Brasil.
O grupo ainda envia uma oferta de 200 milhões de doses da Janssen à Saúde, sem aval da fabricante.
Quando Pazuello é demitido, Cristiano e Dominghetti traçam estratégia para se aproximar do sucessor: “Já estou nos bastidores”. Mais tarde, o policial afirma que está em contato com um “canal do novo ministro”.
A troca na pasta e a falta de respostas sobre a proposta da Janssen, porém, fazem o grupo dar como perdida a negociação.
Dominghetti segue oferecendo vacinas a prefeitos e governadores, além de medicamentos, equipamentos para saúde e até 25 mil toneladas de nióbio.
O policial esperava enriquecer com as vendas de vacinas, e falava em acabar com a vida de aperto financeiro da família. O militar chegou a pedir ajuda de amigos para abastecer o carro antes de depor à CPI da Covid no Senado.
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