Bolsonaro já bateu publicamente em Mourão 17 vezes
Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Que a relação entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seu vice Hamilton Mourão (PRTB) já começou estremecida não é novidade. Mourão foi a terceira opção do ex-capitão para ser seu companheiro de chapa, depois de Janaína Paschoal (que acabaria eleita a deputada estadual mais votada do país, pelo PSL, em São Paulo) e do “príncipe” Luiz Philippe de Orleans Bragança (eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro). A chapa foi eleita, mas a harmonia acabou rapidamente. A crise entre eles se arrasta desde o fim de janeiro de 2019, antes mesmo de terminar o primeiro mês do governo então recém-eleito. Desde então, o presidente falou mal direta ou indiretamente de Mourão, em público, ao menos 17 vezes.
Às 6h da manhã do dia 5 de agosto de 2018, o então candidato à presidência pelo Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro, ligou para o general da reserva Hamilton Martins Mourão para oferecer a vaga de candidato a vice-presidente da República. Mourão já estava filiado ao Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). A campanha foi feita sem estresse aparente entre os dois.
Empossados, tudo começou a mudar rapidamente. Em 22 de janeiro de 2019, o presidente foi às redes sociais alfinetar a imprensa, como faz quase diariamente desde então. Pouco depois, o vice-presidente fez questão de agradecer o empenho dos profissionais que diariamente o encontram no Palácio do Planalto, em Brasília. A postagem foi interpretada como clara forma de Mourão se distanciar da conduta de Bolsonaro.
Desde o início do governo, Mourão fez questão de falar à imprensa praticamente todos os dias, respondendo às questões de jornalistas ao chegar ou sair do Palácio do Planalto. Bolsonaro, por outro lado, chegou a falar com repórteres na frente do Alvorada e a receber jornalistas para cafés da manhã no palácio, mas a relação logo se deteriorou, à medida em que o presidente tornava-se mais e mais cáustico, muitas vezes desrespeitoso, com profissionais da imprensa.
O presidente já adotava a estratégia de, sempre que possível, questionar e desqualificar a confiabilidade e legitimidade da imprensa.
Em meados de fevereiro de 2019, os ânimos dos contrários a Mourão começavam a ferver. Apesar de o presidente ainda não ter proferido, à época, uma palavra contra Mourão, o vereador e filho “02” de Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, já não escondia as críticas ao vice escolhido pelo pai. Carlos seguia um roteiro já percorrido pelo professor on-line de filosofia e espécie de guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho.
O primeiro ano de governo passou com uma espécie de mal-estar escondido entre os dois. Até então, Bolsonaro apenas desautorizava privadamente Mourão a dar declarações sobre pautas defendidas ou atacadas pelo governo federal, sem mandar recados ou alfinetadas em público.
A partir de março de 2020, contudo, quando a pandemia do novo coronavírus dava primeiros sinais no Brasil, Bolsonaro começava a perder a paciência com Mourão e expressar o descontentamento publicamente. Um dia após o vice-presidente ter afirmado que o isolamento social seria sim importante para o combate da crise sanitária, contrariando as crenças de Bolsonaro, o chefe do Executivo federal afirmou, em tom ainda ameno:
“O presidente sou eu, pô. Os ministros seguem as minhas determinações. E o Mourão tem ajudado bastante, colaborado, dado opiniões, é uma pessoa que está do meu lado ali. É o reserva de vocês. Se eu empacotar aí, vocês vão ter que engolir o Mourão. É uma boa pessoa, podem ter certeza”.
Um dia depois, contudo, Bolsonaro continuou, em entrevista ao programa do Datena, na TV Band, já aumentando a pressão: “Com todo o respeito ao Mourão, ele é muito mais tosco do que eu. Não é porque é gaúcho, não. Alguns falam que eu sou até muito cordial perto do Mourão. Ele é o único que não é demissível no governo, então pode ficar à vontade”, afirmou o presidente.
Logo nos primeiros dias de abril, foi a vez de Carlos atacar Mourão mais uma vez. O 02 criticou Mourão por ter se reunido com o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB): “O que leva o vice-presidente da República [a] se reunir com o maior opositor socialista do governo, que se mostra diariamente com atitudes totalmente na contramão de seu Presidente?”, questionou o vereador em um publicação no Twitter.
Durante um voo no dia 11 de abril, dois senadores e um deputado que acompanhavam o presidente confirmaram ao Estadão que, durante a ida de Brasília ao Rio de Janeiro, Bolsonaro passou o trecho inteiro tecendo críticas ao vice-presidente. A viagem acabou apelidada de “voo da queimação”.
Já no fim de agosto, Bolsonaro teria se incomodado com a fala do vice sobre militares acumularem remunerações que ultrapassem o teto do funcionalismo – e disse que Mourão parecia “gostar de jogar contra”.
A partir daí, Mourão já havia percebido que não era mais querido entre o clã Bolsonaro e começava a dar declarações à imprensa de que, provavelmente, não comporia a chapa presidencial com Bolsonaro em 2022. Foi uma das declarações do general logo nos primeiros dias de setembro.
No dia 4 de setembro, também sem citar nomes, Bolsonaro se referiu a Mourão como “terceiros”, ao comentar uma declaração que o vice havia dado sobre o leilão do 5G. À época, estava no auge o imbróglio político entre Brasil e China, e o vice-presidente opinou que nenhum país [China] deveria sofrer distinção. “Quem vai decidir o 5G sou eu, não terceiros, ninguém dando palpite por aí, não. Eu vou decidir o 5G”, salientou Bolsonaro, na época.
Em outubro, quando a compra da vacina contra a Covid-19 Coronavac começou a ser rechaçada pelo presidente Bolsonaro, Mourão foi na contramão e disse que o governo compraria, sim, a vacina chinesa.
Bolsonaro rebateu, à CNN Brasil: “Eu não delego a ninguém tratar sobre qualquer outro assunto relacionado ao presidente da República. E a caneta BIC é minha e ainda tem tinta”.
Novembro ficou marcado pela eleição do novo presidente norte-americano, o democrata Joe Biden, que Bolsonaro demorou semanas a reconhecer, mesmo depois do resultado oficial. Mourão disse a jornalistas que achava que o presidente estava aguardando terminar a discussão sobre “se tem voto falso ou não tem voto falso”. O chefe do Executivo não gostou e, mais uma vez, desautorizou o general.
“O que ele [Mourão] falou sobre os Estados Unidos é opinião dele. Eu nunca conversei com o Mourão sobre assuntos dos Estados Unidos, como não tenho falado sobre qualquer outro assunto com ele“, disparou Bolsonaro.
Bolsonaro também se incomodou com uma proposta do Conselho Nacional da Amazônia Legal (Cnal) – comandado por Mourão –, que falava em expropriação de áreas com desmatamento e queimadas ilegais. Sem citar nomes, mas para alfinetar Mourão, o chefe do Executivo declarou: “Se alguém levantar isso aí, eu simplesmente demito do governo, a não ser que essa pessoa seja ‘indemissível’”.
Em dezembro, Mourão saiu em defesa da chinesa Huawei na corrida do 5G. Além de Bolsonaro, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, não gostou nada da declaração de Mourão, de que banir a empresa da disputa encareceria os serviços para os consumidores.
“Esse tema será tratado entre mim e o presidente da República, até porque Mourão está com o Conselho da Amazônia, que demanda muita atenção e muito trabalho. Acho que ele não vai ter tempo para tratar também do tema do 5G, que está sendo bem tratado pelo ministério”, disse o ministro. Logo a seguir, Bolsonaro emendou: “5G ninguém fala comigo sem antes conversar com Fábio Faria”, disse o presidente, sem citar nomes.
Segundo levantamento do Metrópoles, os dois só se reuniram reservadamente apenas três vezes em 2020, como apontam registros oficiais da agenda da Presidência da República. Além dessas três ocasiões, os dois também se encontraram em 12 oportunidades na companhia de outras autoridades, totalizando 15 compromissos conjuntos ao longo de todo o ano passado.
Janeiro deste ano começou a todo vapor. Em uma das críticas mais escrachadas a Mourão, Bolsonaro disse que ele era um palpiteiro, depois de Mourão afirmar que aconteceria um reforma ministerial. “O vice falou que eu tô para trocar o chefe do Itamaraty. Quero deixar bem clara uma coisa: tenho 22 ministros efetivos e um que é interino, e é aí que podemos ter um nome diferente ou efetivação do atual. Nada mais além disso,” disse Bolsonaro.
Ele continuou com a crítica ao vice-presidente: “Lamento que gente do próprio governo agora passe a dar palpites no tocante a troca de ministros. O que nós menos precisamos é de palpiteiros no tocante à formação do meu ministério. Deixo bem claro: eu que escolho os ministros e mais ninguém. Se alguém quiser escolher ministro, se candidata em 2022 e boa sorte”.
Em fevereiro, inclusive, Mourão foi cortado por Bolsonaro da segunda reunião ministerial seguida, de 2021. Na primeira do ano, em 6 de janeiro, Mourão ainda cumpria isolamento depois de ter contraído a Covid-19.
No meio do ano, Bolsonaro se divorciou de vez do vice: “Não tenho nada a ver com Mourão. Mourão tem a vida política dele, e eu tenho a minha”, disse o presidente ao ser questionado se Mourão “continuaria na geladeira”.
Em julho, Bolsonaro disparou, em entrevista à rádio Arapuan, de João Pessoa (PB), que Mourão era como um cunhado que tinha que aturar: “O Mourão faz o seu trabalho, tem uma independência muito grande. Por vezes aí atrapalha um pouco a gente, mas o vice é igual cunhado, né. Você casa e tem que aturar o cunhado do teu lado. Você não pode mandar o cunhado embora. Então, estamos com Mourão, sem grandes problemas, mas o cargo dele é muito importante para agregar aí. Dele, não. O cargo de vice é muito importante para angariar simpatias quer seja para candidatura à Presidência, governador ou prefeito”, detalhou.
“A escolha do meu vice na última [eleição] foi muito em cima da hora, assim como a composição das bancadas, especialmente da bancada de deputados federais. Muitos parlamentares, depois de ganhar as eleições com o nosso nome, muitos se transformaram em verdadeiros inimigos, muitos não, uma minoria”, completou o chefe do Executivo federal.
Em um escândalo envolvendo uma lista de transmissão no WhatsApp, Bolsonaro debochou de Mourão em uma mensagem em formato de “meme”, composta por três fotos: Na primeira, ele [Bolsonaro] aparece com a faixa de presidente e com a legenda “Comandante Supremo das Forças Armadas”; ao lado, Walter Braga Netto, de terno e também com uma faixa, escrito “Ministro da Defesa”; embaixo, aparecia uma imagem de Mourão sem camisa, de boné e óculos escuros, com a legenda “Vice”.
De acordo com a coluna do Guilherme Amado, no Metrópoles, fazem parte da lista de transmissão ministros, assessores e aliados.
Em seguida, o presidente Bolsonaro também teria ficado furioso, Mourão e Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tinham se reunido. Um de seus informantes disse a ele que o vice-presidente estaria disposto a pedir o julgamento separadamente da chapa presidencial nas ações que tramitam na Justiça eleitoral contra os dois. Mourão desmentiu tudo.
À Veja, um ministro fiel ao presidente revelou que com o passar do tempo, Mourão já havia virado um “inimigo” de Bolsonaro. “Se alguém que você conhece visita um inimigo seu, o que ele vira para você?”, analisou o ministro.
Em conversa com o Metrópoles, na manhã dessa segunda-feira (23/8), Mourão disse que a relação entre presidente e vice “nunca foi simples”.
“Não é uma relação simples, né, nunca foi, entre presidente e vice. Nós não somos os primeiros a vivermos esse tipo de problema, mas a gente sabe muito bem que ele conta com a minha lealdade acima de tudo, porque não abro mão dos valores que aprendi ao longo da minha vida – da lealdade, da honestidade, da integridade, da probidade. Então, ele pode ficar tranquilo sempre a meu respeito”, disse o vice-presidente, ao chegar em seu gabinete.
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