Brasil pode ter lei contra monumentos a escravagistas
Foto: GABRIEL SCHLICKMANN/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO
O fogo na estátua de 10 metros do bandeirante Manuel de Borba Gato reacendeu o debate sobre a pertinência de monumentos que homenageiam pessoas ligadas à escravidão, à ditadura e a outros períodos sensíveis no passado do Brasil.
Era o objetivo. “O ato foi para abrir um debate. Em nenhum momento foi feito para machucar alguém ou querer causar pânico. Que as pessoas agora decidam se querem ter uma estátua de 13 metros de altura [com o pedestal] que homenageia um genocida e um abusador de mulheres”, disse Paulo Roberto da Silva Lima, o entregador de aplicativos e ativista conhecido como Galo, ao se entregar voluntariamente à polícia.
Para diminuir a presença desses monumentos na vida das cidades ou simplesmente fazê-los sumir da vista, projetos de lei defendem substituí-los, retirá-los ou contextualizá-los, neste caso explicando quem são e o que fizeram as figuras homenageadas. Há proposições em todas as esferas: nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados.
Cada projeto tem sua particularidade. Eles se diferenciam pela forma da participação popular, pelos destinos de cada símbolo e e pelas propostas de ações reparatórias, como estudo da cultura negra e indígena. Têm como objetivo comum, porém, rever homenagens públicas a pessoas que feriram populações vulneráveis no passado.
O debate é antigo. Em 2001, então vereador da cidade de São Paulo, Nabil Bonduki, propôs um projeto de lei para retirar as referências aos bandeirantes que estão esculpidas no mármore da Câmara Municipal. O vereador considerava ultrajante aos povos indígenas, mas seu argumento não foi suficiente e a sugestão terminou arquivada.
Vinte anos depois, em 2021, a vereadora Luana Alves (PSOL) apresentou projeto de lei que prevê a retirada, substituição, sinalização de símbolos que façam homenagens a escravocratas, nazistas ou eugenistas, além de determinar o ensino da cultura afrobrasileira e indígena nas escolas municipais.
Seu projeto apresenta possibilidades já exploradas em outros locais, como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha. Embora tenha sido aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), tem pouca perspectiva de ganhar o sim do plenário.
A vereadora acredita que muitos grupos ainda se beneficiam das estruturas de poder criadas durante a atuação das pessoas retratadas nos monumentos, daí a dificuldade de debater pautas como essa no país.
“Aqui nós encontramos muita dificuldade. O projeto que eu apresento na Câmera não traz novidades em relação ao que outras cidades do mundo fizeram. Mas falar sobre retirar uma estátua é questionar a estrutura de poder atual no Brasil”, afirma.
Após o incêndio na estátua de Borba Gato, diversas ações estão sendo direcionadas para a retirada do monumento, que é alvo de críticas desde a sua inauguração.
O mandato coletivo Bancada Feminista do PSOL protocolou um projeto de decreto legislativo que propõe a convocação de consulta pública sobre o destino da estátua. O objetivo é fazer com que a população participe da tomada de decisão. As iniciativas, no entanto, encontram resistência.
Aqueles contrários à retirada dos monumentos argumentam que isso pode gerar um apagão histórico. Que os símbolos contam a história do local e que sua presença não significa a defesa ou a legitimação das ações que as pessoas retratadas fizeram no passado.
A historiadora Ana Lúcia Araújo, professora do Departamento de História da Universidade Howard, afirma que a permanência desses símbolos não se relaciona com a preservação da história, mas com a conservação de uma memória pública que foi utilizada por grupos para impor agendas políticas e a sua própria visão do espaço público no passado.
A retirada, substituição ou mesmo derrubada de qualquer símbolo que ocupe o espaço público, diz a historiadora, pode ser utilizada para apagar a memória que foi construída e que anos depois já não corresponde à sociedade em que está inserida.
“Esses monumentos foram erguidos para prestar homenagem a pessoas que eram algozes. Então, nesse sentido, cabe a retirada desses monumentos. Essa história não está apagada, ela está no arquivo. Existem historiadores escrevendo sobre isso, jornalistas que escrevem sobre isso”, afirma.
Araújo lembra que, em diversos momentos da história, monumentos foram retirados ou derrubados sem que a história fosse apagada, como durante a independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a derrubada dos regimes comunistas na Europa oriental.
No caso do Brasil, a historiadora avalia que diversas saídas podem ser consideradas, como a retirada ou o armazenamento dos monumentos para substituição, exposição em museus ou parques, ou mesmo que o espaço que ocupavam fique vazio.
“Todas essas alternativas estão sendo consideradas aqui [nos EUA] e em outros países onde monumentos estão sendo retirados também. Não existe uma solução única. Mas é preciso avaliar porque, por exemplo, a situação dos museus no Brasil é um caos, um desastre, uma tragédia. E tem muitos museus que não querem essas obras”, diz.
Nos EUA, 169 símbolos que exaltavam os confederados foram retirados em 2020, de acordo com um levantamento feito pelo Southern Poverty Law Center. Aproximadamente 100 deles eram estátuas. Por outro lado, ainda restam pelo menos 2.100 símbolos pelo país, sendo cerca de 700 deles monumentos.
Assim como no Brasil, o debate não é recente, mas se intensificou após os protestos contra o racismo de junho e julho do ano passado, que tiveram início após a morte do norte-americano George Floyd.
Durante as manifestações, participantes derrubaram estátuas e monumentos de personagens históricas ligadas à escravidão.
Aqui no Brasil, a deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL) apresentou projeto de lei que propõe a retirada de monumentos públicos das ruas de São Paulo para que sejam colocados em museus. Sugere também que prédios, rodovias, ruas, estradas e todos os outros símbolos que tenham o nome ou referência a escravocratas sejam renomeados a partir de uma comissão permanente.
“Enquanto essas imagens, arquiteturas e espaços urbanos ainda forem inóspitos e violentos de forma simbólica e objetiva para algumas pessoas, isso deve gerar indignação”, diz. “É uma dor coletiva que gerou um projeto de desigualdade. Ter uma estátua do Borba Gato é como se a gente endossasse a violência das periferias, as pessoas em situação de rua, o encarceramento. É como se a gente endossasse a desigualdade.”
Na Câmara dos Deputados, as deputadas federais Taliria Petrone (PSOL) e Áurea Carolina (PSOL) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB) apresentaram um projeto que, se aprovado, irá proibir homenagens a proprietários de escravos, traficantes de escravos e pensadores que defenderam e legitimaram a escravidão em monumentos públicos em todo o país. Os deputados defendem que os monumentos devem ser levados a museus.
Assim como as outras proposições, o projeto aguarda votação, mas tem pouca perspectiva de aprovação.
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