Empresa das vacinas superfaturadas tem outras peripécias
Foto: Adriano Machado
Para fornecer preservativos femininos ao Ministério da Saúde, a Precisa Medicamentos seguiu o mesmo roteiro de irregularidades investigadas pela CPI da Covid no contrato de compra da vacina indiana Covaxin: quebra de cláusula contratual e atrasos na entrega dos produtos, com três notificações sobre possibilidade de sanção pela pasta; oferta de garantia imprópria; e preço inflado em relação ao praticado na Índia.
Documentos internos do ministério mostram que a empresa foi notificada sobre um primeiro atraso, no contrato mais recente para o fornecimento de preservativos femininos, em 19 de fevereiro, com aviso de que a pasta poderia aplicar sanções administrativas em razão do descumprimento contratual.
Naquele momento, as tratativas sobre a Covaxin estavam em ritmo acelerado. Três dias depois, no dia 22, o Ministério da Saúde emitiu uma nota de empenho reservando R$ 1,61 bilhão para pagar por 20 milhões de doses de uma vacina que nunca foi entregue.
O contrato do imunizante foi assinado no dia 25 do mesmo mês. O pagamento não foi efetivado.
A contratação da Covaxin, fabricada pela Bharat Biotech e intermediada pela Precisa, é um dos principais focos da CPI da Covid no Senado.
A comissão já quebrou diversos sigilos bancários e fiscais e já ouviu a diretora técnica da Precisa, Emanuela Medrades. O próximo a ser ouvido é o dono da empresa, Francisco Emerson Maximiano.
Depois que fraudes foram reveladas, e diante das suspeitas de corrupção, o contrato foi suspenso e será cancelado pelo ministério.
O caso é formalmente investigado por Polícia Federal, MPF (Ministério Público Federal), TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controladoria-Geral da União). A Bharat Biotech rompeu a parceria com a Precisa.
Os documentos da última contratação da Precisa para o fornecimento de preservativos femininos ao governo Jair Bolsonaro revelam um padrão de atuação muito semelhante ao contrato das vacinas. Os atos relacionados aos preservativos ocorreram antes da parceria para os imunizantes.
Ao todo, a empresa já assinou três contratos com o Ministério da Saúde para fornecer preservativos, em 2018, 2019 e 2020.
A Precisa já recebeu R$ 102,3 milhões do governo federal, segundo os dados disponíveis no Portal da Transparência.
A contratação mais recente é de 13 de novembro de 2020. Naquele momento, já havia tratativas no ministério sobre a possibilidade de compra da vacina Covaxin.
Para fornecer os preservativos femininos, a empresa foi escolhida por meio de pregão eletrônico.
O total estabelecido em pregão foi de 10 milhões, mas o contrato foi assinado para a entrega de 5 milhões de unidades. A fabricante, Cupid Limited, é uma empresa indiana, a exemplo da Bharat Biotech.
Cada unidade saiu por US$ 0,60, ou R$ 3,15, como consta no contrato. O valor total é de R$ 15,75 milhões.
Conforme o cronograma estabelecido em cláusula sobre o prazo de entrega, o fornecimento deveria ocorrer da seguinte forma: 500 mil unidades até 31 de dezembro, 2,5 milhões até 20 de março e 2 milhões até 20 de maio.
Todos os prazos foram desrespeitados, o que foi detectado internamente, com expedição de três notificações sobre a irregularidade e sobre possibilidade de punição administrativa.
As notificações foram dirigidas a Medrades, diretora técnica da Precisa. Foi ela que também conduziu as tratativas referentes à Covaxin.
Segundo a Precisa, todos os fornecedores do Departamento de Doenças Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis tiveram problemas nas entregas em razão da pandemia.
O problema não teria ocorrido apenas com a Cupid, segundo a empresa. Houve superlotação de contêineres de navios em razão das demandas na pandemia, conforme a empresa.
O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Os primeiros 500 mil preservativos foram entregues em 15 de janeiro, com 15 dias de atraso, conforme a primeira notificação enviada à diretora. O departamento responsável alertou sobre a possibilidade de sanções e pediu a apresentação de defesa prévia pela empresa.
Na defesa, a Precisa culpou a pandemia, uma crise de saúde pública sem precedentes na história recente, com efeitos nos tamanhos de frotas marítimas e aéreas. Além disso, segundo a Precisa, a pasta atrasou os trâmites para a importação dos preservativos, tendo parte da responsabilidade no atraso.
A Precisa voltou a ser notificada em maio, por mais um atraso, desta vez referente à segunda parcela, de 2,5 milhões de unidades. O atraso foi de 24 dias.
A terceira parcela dos preservativos também chegou atrasada ao ministério, conforme nova notificação enviada à Precisa, em junho. O atraso foi ainda maior: 28 dias.
A quebra de cláusula contratual sobre prazos de entrega foi a primeira irregularidade identificada na compra da Covaxin.
O descumprimento do contrato foi apontado pelo MPF, o que levou a um aprofundamento das investigações e à oitiva do chefe de importação do ministério, Luis Ricardo Miranda, que apontou uma pressão atípica para liberação da importação da vacina.
A revelação do depoimento pela Folha, em 18 de junho, levou o caso Covaxin para o centro das investigações da CPI e novos procedimentos foram abertos pelos órgãos de controle.
A Folha também mostrou a irregularidade na garantia oferecida pela Precisa, emitida pela empresa FIB Bank para cobrir 5% do contrato, no valor de R$ 80,7 milhões. A garantia é do tipo fidejussória, pessoal, e não está prevista nem no contrato assinado nem na lei de licitações.
O contrato dos preservativos conta com o mesmo tipo de garantia, emitida pela mesma empresa. Ela também cobre 5% do contrato, no valor de R$ 787,5 mil.
A FIB Bank tem um sócio oculto, segundo ações de cobrança movidas na Justiça em São Paulo: o empresário Marcos Tolentino da Silva, próximo ao líder do governo Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).
A Precisa afirma que envia rascunhos das garantias para o ministério e que a pasta sempre valida previamente as garantias a serem ofertadas. Nunca houve uma recusa, de acordo com a empresa.
O preço ofertado pela Precisa no pregão, que resultou no contrato para fornecimento dos preservativos, é mais do que o dobro do praticado pela Cupid na Índia no começo de 2020.
Segundo documentos da empresa indiana, a unidade do preservativo feminino saía por 21 rúpias, o equivalente a US$ 0,28 pela cotação atual. O valor pago pelo ministério ficou em US$ 0,60.
A Precisa diz que o preço ofertado em pregão foi o menor dentre os concorrentes e que o valor citado em um documento da Cupid era praticado antes da pandemia. A crise mundial elevou o preço do látex, em razão da alta demanda por luvas, e o valor dos preservativos, hoje, seria 40% superior ao apontado no pregão, segundo a empresa.
O preço da Covaxin também é alvo de investigação. Dentre as vacinas compradas pelo governo Bolsonaro, a indiana é a mais cara: US$ 15 por dose.
Em reunião no ministério em 20 de novembro, com representantes da Bharat Biotech e da Precisa, o preço mencionado foi US$ 10.
Em um terceiro negócio, em 2018, a Precisa embolsou R$ 20 milhões antecipados sem entregar medicamentos para doenças raras, o que levou à morte de 14 pacientes, segundo ação de improbidade em curso na Justiça Federal em Brasília.
Barros, ministro da Saúde no momento do contrato, é um dos réus. Todos os envolvidos negam irregularidades nesse caso.
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