General que ameaçou STF cria ONG negacionista

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Foto: Getty Images

O IGVB (Instituto General Villas Bôas), uma organização não governamental criada pelo ex-comandante do Exército, vai promover no final do mês um seminário virtual com palestras de dois conhecidos negacionistas do aquecimento global, dois ministros do governo Bolsonaro, militares e o vice-presidente da República, Hamilton Mourão.

Será o primeiro webinar do IGVB, que tem como parceiros a empresa de comunicação FSB, que detém ou deteve vários contratos com órgãos públicos na Esplanada dos Ministérios, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) e a Poupex, uma associação de poupança e empréstimo gerida pela FHE (Fundação Habitacional do Exército), vinculada ao Exército.

Em notas à coluna, tanto a FSB quanto a CNI disseram que apoiam o instituto mas não participaram da escolha dos palestrantes e da organização do encontro virtual (leia mais sobre as notas ao final do texto). A FHE Poupex e o IGVB não se manifestaram.

O webinar sobre a Amazônia começará em 25 de agosto, duas semanas depois da divulgação, nesta segunda-feira (9), de um novo relatório do IPCC, ou Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, vinculado à ONU (Organização das Nações Unidas). O documento foi produzido por mais de 200 cientistas de mais de 60 países e apontou, entre outras conclusões, que o aquecimento está ocorrendo de forma ainda mais rápida do que se pensava e que a maneira efetiva de interromper o processo é acabar com as emissões de gases de efeito estufa.

Dois dos palestrantes convidados pelo IGVB para o webinar são o meteorologista Luiz Carlos Baldicero Molion, que falará sobre “aquecimento global antropogênico: verdades e mentiras”, e o geólogo Geraldo Luís Saraiva Lino, que discorrerá sobre “carbono zero: desafios”.

Ao longo dos últimos anos, Molion e Lino escreveram textos e deram palestras contrárias ao consenso científico mundial sobre a emergência climática. Lino é autor de um livro intitulado “A fraude do aquecimento global”. A sinopse da obra diz que o “infundado alarmismo ‘aquecimentista’ é promovido por interesses políticos e econômicos, que transformaram um debate científico em uma obsessão mundial e uma verdadeira indústria”.

Lino integra um certo “Movimento de Solidariedade Iberoamericana”, cujo site na internet hospeda vários textos que atacam ONGs ambientalistas, a Funai, indigenistas e cientistas. Um dos mais recentes, postado por Lino em 2 de agosto, critica a doutora em microbiologia Natalia Pasternak e defende o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19 – ele discorda da expressão, diz que deveria ser chamado apenas de “tratamento” – , já rechaçado por inúmeras pesquisas científicas. O texto diz que “sim, um conjunto de medicamentos pré-existentes – azitromicina, ivermectina, cloroquinha/hidroxicloroquina, corticoides, anticoagulantes, antiandrogênicos e outros – tem sido utilizado com sucesso no tratamento dos infectados, salvando milhões de vidas em todos os países”.

Molion há anos é considerado o principal expoente, no Brasil, do negacionismo da emergência climática. Em 2018, proferiu palestras patrocinadas por produtores rurais na Bahia. Numa delas, citada pela “Folha de S. Paulo”, declarou: “O aquecimento global é um mito: a temperatura mundial não está aumentando, nós vivemos ciclos de aquecimento e resfriamento que sempre existiram”.

O webinar do IGVB prevê seis palestras mediadas pelo jornalista Alexandre Garcia, nenhuma com cientistas especialistas em aquecimento global ou com trabalhos ligados ao IPCC. Além de Molion e Lino, falarão os ministros Tarcísio Freitas (Infraestrutura) e Tereza Cristina (Agricultura), o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva e o general Ubiratan Poty, identificado como “diretor do Departamento do Departamento do Programa Calha Norte, do Ministério da Defesa”.

O evento será aberto pelos generais reformados Villas Bôas e Hamilton Mourão, que além de vice-presidente é presidente do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal).

Indagado pela coluna sobre os trabalhos acadêmicos de Molion e Lino, o vice-pró-reitor de pesquisa da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor colaborador do Climate Change Institute (CCI), da Universidade do Maine (EUA), Jefferson Simões, disse que são “negacionistas do conhecimento científico”. “Eles insistem, cada vez que assume um novo governo, eles tentam demonstrar que toda a comunidade científica está errada e eles estão certos”, disse Simões.

“As conclusões dos relatórios do IPCC vêm de milhares e milhares de artigos científicos feitos por toda a comunidade científica internacional. Mais de 99% dos cientistas têm essa opinião. Não há dúvida nenhuma, e por isso se montam os cenários. [O relatório do IPCC] é representativo do conhecimento científico atualizado. Os cenários são claros e o relatório é simples, reforça tudo o que foi dito nos últimos 20 anos. Porque o cenário está muito mais claro”, disse Simões.

O jornalista especializado em ciência Claudio Angelo, coordenador de comunicação da coalizão OC (Observatório do Clima) e autor de um livro-reportagem referencial sobre o aquecimento global, “A espiral da morte” (Companhia das Letras, 2016), obra vencedora do Prêmio Jabuti, disse que eventos como o webinar do IGVB mostram “várias coisas de uma vez e todas elas são trágicas para o Brasil”.

Um das mais importantes, segundo ele, é que “as Forças Armadas brasileiras ainda não superaram a Constituição de 1988 e a redemocratização, ao insistirem nas teses do ‘integrar para não entregar’ a Amazônia e de que há uma grande conspiração globalista entre ONGs ambientais, indígenas e potências estrangeiras para tomar a Amazônia do Brasil”.

“Isso é uma maluquice, não tem outro jeito de definir. Uma coisa sem pé nem cabeça, que mostra que nosso Exército não chegou ainda ao século 21 e não superou 1988. O que é pior, essas pessoas agora estão no poder. Elas estão tentando destruir tudo o que o país ganhou com a Constituição de 1988. São de fato os insatisfeitos de 1988 que estão botando as mangas de fora e voltando a insistir nas mesmas maluquices de sempre”, disse Angelo.

O jornalista lembrou que o sumário com as conclusões do relatório do IPCC foi aprovado na semana passada por representantes de 196 países, incluindo os do próprio governo de Jair Bolsonaro, cujos diplomatas estavam na assembleia do IPCC.

“Então você tem, de um lado, o governo brasileiro sancionando o alarme mais poderoso que a ciência já fez sobre o papel dos seres humanos no clima e, de outro, você tem o vice-presidente da República se juntando a um evento de teóricos da conspiração que dizem que o aquecimento global não existe. É assim de um grau de mau-caratismo que é típico do governo Bolsonaro, não dá nem pra dizer que a gente não esperava.”

Com eventos do gênero, que têm as participações de ministros e do vice-presidente, o Brasil também se coloca, segundo Angelo, “talvez como o último grande negacionista do planeta”. “Dos dez maiores emissoras do mundo, o Brasil é o único que tem um governo patentemente negacionista e que permite que negacionistas do aquecimento global apareçam em evento com a presença de seus ministros e do seu vice-preidente. O Brasil é um perigo climático para o mundo.”

A CNI (Confederação Nacional da Indústria) disse, em nota à coluna, que “acredita no livre debate de ideias e de propostas para os temas que afetam as questões estratégicas para o país”. Ressaltou, porém, que a entidade “não tem ingerência na gestão do Instituto Villas Bôas. Também não participa da escolha de nomes nem da definição da programação dos eventos realizados pela instituição”.

A entidade afirmou ainda que “defende a ciência e incentiva a inovação e o desenvolvimento tecnológico”. “Desde 2019, a entidade apoia o Instituto Villas Bôas em seu objetivo de estimular a inclusão social de portadores de doenças raras com tecnologias assistivas e políticas públicas, bem como de debater e formular estratégias de desenvolvimento do país e para a indústria de defesa nacional.”

Villas Bôas é portador da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), doença degenerativa do sistema nervoso, que provoca paralisia motora.

Sobre o aquecimento global, a CNI disse que “sustentabilidade, meio ambiente e clima são assuntos que integram a pauta prioritária global, do país e da indústria”. “A CNI participará da COP-26, em Glasgow, e vem trabalhando com o governo, a sociedade civil e os demais interessados em propostas, ações, documentos e levantamentos para balizar a atuação das autoridades no encontro.”

A entidade disse ainda que “apoia, por exemplo, a regulamentação de um mercado de carbono no Brasil, por meio da criação de um sistema de comércio de emissões no modelo cap and trade”

“O estudo ‘A Precificação de Carbono e os Impactos na Competitividade da Cadeia de Valor da Indústria, elaborado pela CNI, mostra que o cumprimento do Acordo de Paris no Brasil está fortemente ligado ao controle dos índices de desmatamento ilegal. O estudo indica que a efetividade do mercado de carbono no Brasil será bastante limitada se não for acompanhada de uma estratégia mais ampla para o combate às mudanças climáticas, como o controle do desmatamento ilegal, expansão de renováveis e fortalecimento da política nacional de biocombustíveis.”

A FSB disse à coluna, em nota, que “o apoio ao IGVB atende ao compromisso da empresa de realizar atividades pro-bono a causas relevantes, como o incentivo à disseminação de tecnologias assistivas a pessoas com deficiências, apoio a famílias que vivem em comunidades de baixa renda, a promoção de educação de qualidade, entre outras”.

A FSB disse que seu apoio ao evento “se restringe apenas à produção de peças de divulgação e apoio técnico à realização do evento”.

Molion e Lino foram procurados pela coluna mas não foram localizados. Caso se manifestem, este texto será atualizado.

Em seu site na internet, o IGVB define o webinar do próximo dia 25 como “uma moderna visão da plataforma geopolítica da Amazônia e as ações estratégicas para a defesa dos interesses nacionais na questão ambiental”. Segundo a entidade, o encontro trará “grandes nomes do pensamento nacional”. “Infraestrutura, meio ambiente, agronegócio, clima global e regional, desenvolvimento e proteção de fronteiras e a Amazônia no jogo do poder mundial são alguns dos assuntos a serem abordados nesta primeira edição do webinar”, diz o site do instituto.

Uol  

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