Justiça está censurando reportagens sem parar

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Foto: Reprodução

A Justiça censurou quatro reportagens publicadas em veículos jornalísticos em menos de uma semana no país. As decisões foram proferidas por diferentes varas e tribunais — Amazonas, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O GLOBO foi alvo de cerceamento por dois conteúdos publicados no período: uma série que expunha inconsistências e suspeitas de fraude em ensaio clínico da proxalutamida, remédio sem eficácia comprovada contra a Covid-19, e uma reportagem sobre movimentações financeiras da VTC Log, empresa investigada pela CPI da Covid.

Em outros dois casos, a revista “Piauí” foi proibida de publicar informações sobre os desdobramentos do caso de acusação de assédio envolvendo o humorista Marcius Melhem, e a RBS TV, afiliada da TV Globo no Rio Grande do Sul, também foi alvo de censura prévia. O desembargador Jorge André Pereira Gailhard, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, manteve a proibição, determinada por liminar emitida no dia 21 deste mês, de divulgação de reportagem sobre a delação premiada feita por um empresário ao Ministério Público.

A juíza Karine Farias Carvalho, da 18ª Vara Cível da comarca de Porto Alegre, havia impedido a RBS de “realizar qualquer divulgação jornalística, por qualquer meio que seja, de informações ou vídeos”. A proibição se mantém até que a Justiça decida se recebe ou não a denúncia feita pela promotoria, que está em análise.

A censura imposta pelos magistrados foi amplamente criticada por entidades jornalísticas, de defesa da liberdade de expressão e da democracia. Juízes e especialistas ouvidos pelo GLOBO endossam as críticas ao cerceamento imposto pelo Judiciário, que classificam como “ilegítimo”, “autocrático” e “inadmissível”.

O ministro aposentado Celso de Mello, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), diz que “o Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou para proibir o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento”.

— A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República. A prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República. No Estado de Direito, construído sob a égide dos princípios que informam e estruturam a democracia constitucional, não há lugar possível para o exercício do poder estatal de veto, de interdição ou de censura ao pensamento, à circulação de ideias, à transmissão de informações e ao livre desempenho da atividade jornalística — diz Celso de Mello.

As decisões também foram criticadas pelo ministro aposentado Marco Aurélio Mello, que deixou o Supremo no mês passado. Segundo Mello, o cerceamento do Judiciário às reportagens é “inadmissível”: “Censura nunca mais”.

— A tônica é a liberdade de expressão, bem maior de um estado democrático de direito. Deságua se houver extravasamento no direito à indenização por dano material e moral. Inadmissível é pensar-se em cerceio, em verdadeira censura, partindo ou não do Estado. O que se dirá, considerado Judiciário, que tem a obrigação de preservar os ditames maiores da Constituição? É o meu ponto de vista sobre a matéria. Censura nunca mais —afirma.

Nos últimos dias, entidades e associações jornalísticas se posicionaram contra a censura e demonstraram preocupação com as decisões judiciais. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) protestaram contra a repetição de casos de censura prévia, em desacordo com o que determina a Constituição.

“A censura prévia judicial não distingue o tipo de meio de comunicação – televisão, revista e jornal – e tem em comum o fato de privar os cidadãos do direito de serem livremente informados. É lamentável que há tantos anos a censura prévia se repita em nosso país, partindo exatamente do Poder Judiciário, responsável pelo cumprimento das leis. As associações esperam que essas iniciativas de censura sejam logo revertidas por outras instâncias da Justiça, embora já tenham provocado o efeito danoso e inconstitucional de impedir a liberdade de informação. É inadmissível que juízes sigam desrespeitando esse princípio básico do Estado de Direito”, dizem em nota.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), salienta que “pontuais erros da imprensa” devem ser mediados pela Justiça, não por meio de censura.

— A imprensa é livre. Essa liberdade pressupõe equilíbrio e o princípio de ouvir os dois lados. O nosso arcabouço jurídico já assegura que os possíveis e pontuais erros da imprensa sejam decididos pela Justiça, mas nunca por meio da censura — diz.

No Rio, a Justiça proibiu a revista Piauí de publicar reportagem sobre o caso de acusação de assédio envolvendo Melhem. A magistrada Tula Corrêa de Mello, da 20ª Vara Criminal da Justiça do Rio, acatou o pedido do humorista e determinou “a suspensão, pelo tempo que durarem as investigações, da publicação de matéria na revista Piauí ou seu respectivo site”. A censura prévia determina que, em caso de descumprimento, haverá multa de R$ 500 mil e o recolhimento dos exemplares da revista nas bancas e remoção da reportagem do site.

Melhem nega que seus advogados tenham pedido à Justiça para censurar a reportagem da revista. “Meu pedido foi tão somente para que fosse apurado o vazamento de informações sigilosas e para que eu pudesse me defender com as provas que tenho”, disse ele, em nota.

O caso mais recente de censura foi divulgado na quarta-feira pelo GLOBO. A desembargadora Ana Maria Ferreira, da 3ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), mandou retirar do site do jornal informações sobre movimentações financeiras da VTC Log que constam de uma reportagem publicada pelo jornal. A decisão foi proferida na última quinta-feira e atende a um pedido de antecipação de tutela feito pela defesa da VTC Log, que alega ter sido vítima de “violação de sigilo financeiro e bancário”. A reportagem trouxe à tona o relatório produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que aponta dezenas de saques em espécie nas contas da empresa investigada pela CPI da Covid e que tem contrato com o Ministério da Saúde.

A desembargadora Ana Maria Ferreira, da 3ª Turma Cível do TJDFT, determinou a exclusão da matéria publicada pelo GLOBO em um “prazo de 24 horas, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por dia de atraso, até o limite de R$50.000,00 (cinquenta mil reais)”.

Em respeito à determinação judicial, O GLOBO excluiu os links da matéria, e vai recorrer da decisão. O jornal sustenta que o conteúdo da reportagem, além de acurado, é de interesse público. Além disso, o dever da guarda do sigilo de um documento produzido por um órgão público é conferido ao servidor, e não à imprensa, que tem o direito tanto de publicar matérias de interesse da sociedade como o de resguardar o sigilo da fonte.

Na semana passada, na sexta-feira, O GLOBO recebeu uma determinação judicial do juiz Manuel Amaro de Lima, da 3ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho do Amazonas, para retirar do site do jornal reportagens que expunham inconsistências e suspeitas de fraude em ensaio clínico da proxalutamida, remédio sem eficácia comprovada contra a Covid-19. A decisão atendeu a um pedido de Luis Alberto Saldanha Nicolau, diretor da rede de hospitais privados Samel, uma das patrocinadoras do estudo. Nicolau argumenta que as matérias ofendem sua “honra, imagem e reputação”.

A série de reportagens sobre a proxalutamida foi baseada em investigação independente conduzida pelo repórter Johanns Eller a partir de documentos públicos divulgados pela própria equipe de estudiosos. A publicação do material levou à abertura de uma investigação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, um inquérito civil público e de um procedimento criminal no Ministério Público Federal do Amazonas – todos ainda em curso.

Para o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, a decisão afeta não só ao GLOBO como toda a imprensa brasileira.

— É lamentável que alguns magistrados ignorem preceitos básicos da Constituição, que não admite censura. A censura não existe no Brasil. A ANJ defende que, no âmbito da liberdade da imprensa, seja revisada a decisão o quanto antes, pois ela não afeta só o jornal O GLOBO mas também toda a imprensa brasileira. É um atentado à liberdade de imprensa e ao jornalismo investigativo. A população tem o direito de tomar conhecimento de todos os fatos de interesse público — afirmou Rech.

De acordo com Marcelo Träsel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a decisão proferida pela desembargadora Ana Maria Ferreira se caracteriza como “uma violação da liberdade de imprensa”.

— A decisão da Justiça do Distrito Federal contraria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da publicação de informações sob sigilo judicial. Quem está obrigado ao sigilo são os funcionários públicos e outras partes envolvidas em processos, não os jornalistas que eventualmente recebem os documentos. Determinar a remoção de uma reportagem sobre as informações levantadas pela CPI da Covid-19 cerceia o direito dos cidadãos à informação e se caracteriza como uma violação da liberdade de imprensa — disse Träsel.

Para o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Paulo Jeronimo, a decisão da desembargadora Ana Maria Ferreira afronta a Constituição.

— Mais uma vez, uma decisão judicial afronta a Constituição Federal, que, de forma incisiva, em seu artigo V, inciso IX, afirma: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. É importante lembrar que, em vários processos semelhantes, o Supremo Tribunal Federal tem rejeitado decisões de censura a matérias jornalísticas, em defesa da liberdade de expressão e de imprensa. A ABI se solidariza com o jornal O GLOBO e confia na revogação deste ato de censura — escreveu Jeronimo.

O Globo

 

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