Movimento negro boicotará candidatos sem propostas antirracistas
Foto: Rafael Martins/Folhapress
Candidatos à presidência sem propostas para reduzir as desigualdades que prejudicam os brasileiros pretos e pardos não receberão o apoio do movimento negro na eleição de 2022.
O aviso é dado por Helio Santos, um dos principais ativistas da causa racial no país, que esteve à frente de conquistas como a adoção da política de ações afirmativas nas universidades públicas.
“A ideia é que o candidato que não perceber que essa é a questão central que impede o país de ter uma sustentabilidade procure outro emprego”, diz ele, que preside o conselho da Oxfam Brasil e o Instituto Brasileiro de Diversidade.
Segundo Santos, em 2018 o movimento negro aderiu à campanha de Fernando Haddad (PT) contra Jair Bolsonaro (hoje sem partido), embora o petista não tenha colocado, “uma vez sequer, a questão racial na agenda”. Mas não voltará a fazer isso.
Para ele, uma das ferramentas que poderá mudar o rumo do debate e das políticas de equidade no país é o recém-lançado Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), desenvolvido pelos economistas do Insper Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella.
O indicador mede a disparidade entre brancos e negros nas unidades da Federação e nas regiões em três dimensões: alta escolaridade, renda elevada e envelhecimento.
Santos é um dos apoiadores do Pacto de Promoção da Equidade Racial, baseado em um índice com lógica similar à do Ifer, porém com foco nos desequilíbrios raciais das empresas, que também foi desenhado por Firpo, França, o economista Lucas Rodrigues, da USP, e Rafael Tavares, do Banco Mundial.
Por que o termo racismo estrutural tem sido tão usado? O racismo nasce pela forma como o Brasil é construído, com a escravidão. Para cada 10 anos de Brasil, 7 aconteceram sob o signo da escravidão. Depois, você teve abolição que em momento algum procurou incluir aquele grupo numeroso, pelo contrário.
Recentemente, nós todos temos reclamado muito das polícias militares. Sem o contexto histórico, você não entende. As polícias militares no Brasil florescem precisamente quando vem a abolição. Ou seja, nascem para reprimir o desempregado.
Vadio era quem não tinha emprego, e quem não tinha emprego era aquele que foi libertado da escravidão. É estrutural porque está na forma como a sociedade brasileira foi formada.
As pessoas gostam tipificar o racismo. Há aquele racismo de cunho individual, que remete ao Código Penal. É necessário trabalhar no campo educativo para que, no longo prazo, ele diminua. Agora, falar em racismo estrutural remete à política pública. Mas a expressão ganhou certa banalidade. Se é da estrutura, o que fazer? Prefiro a expressão racismo sistêmico.
Por quê? Porque enfatiza que você precisa de políticas sistêmicas. Não adianta flexibilizar o acesso à universidade. Em seguida, tem que ter outra política que garanta a manutenção dessas pessoas em condições para que elas cumpram bem o curso. E continua depois no mercado de trabalho.
Elas têm que ter as mesmas oportunidades e, trabalhando, elas também precisam ter as mesmas chances de prosperar que as demais. Repare que são políticas encadeadas, porque o racismo é sistêmico.
Gosto muito de frisar que nenhum governo, independentemente do seu perfil ideológico, deu à questão racial a centralidade estratégica que ela tem. Nenhum. Se você me pedisse para decifrar o Brasil em apenas uma palavra, eu usaria desigualdade. E a desigualdade no Brasil é uma decisão política. Está nos partidos, nas pessoas, na forma de o país funcionar, está imbricada em toda a sociedade.
Essa desigualdade no país é negra? A desigualdade aqui tem uma intersecção de raça e gênero. Há uma feminização da pobreza. Você tem aproximadamente 28 milhões de lares liderados por mulheres, em sua maioria pobres. Eu as chamo de famílias de risco. É nessas famílias que ocorre a gravidez precoce, que estão esses jovens que são mortos todos os dias e onde está o círculo vicioso da pobreza.
Até hoje, não tivemos políticas públicas que buscassem essas famílias de risco. O Bolsa Família mitiga a pobreza. A única política que efetivamente reduziu, nos últimos tempos, as desigualdades no Brasil foram as ações afirmativas na universidade.
O sr. foi um dos líderes do movimento pelas cotas. Como foi esse processo? Eram precisamente aqueles raros negros que tinham passado pela universidade pública que buscaram as ações afirmativas.
Era seu caso? Precisamente o meu caso, que estudei a vida inteira em escola pública, do jardim de infância até o doutorado.
Como todos sabem, não há escola pública de graça, é um custo para a sociedade. Nós percebemos que a única política pública que as classes altas ainda reivindicavam era a universidade pública. Por quê?
A classe média alta e os ricos querem distância do SUS, só precisam agora por conta das vacinas. A segurança privada é uma realidade, embora as classes altas suportem as polícias para proteger seu patrimônio. Mas a universidade pública era onde as elites achavam que tinham que estar. Quando nós entendemos isso e focamos a universidade pública, a grita foi geral.
Não esqueço um dia, ali na metade dos anos 90, quando um colega seu, de um jornal importante, insistiu [em perguntar] na entrevista se eu era a favor das cotas raciais. Ele queria que eu dissesse que sim para criar toda uma contextualização.
E eu disse que não, que o que queríamos era reduzir as cotas radicais de 100% para brancos que aconteciam em diversas instâncias do país, na Redação do seu jornal, na direção de muitas empresas. Foi uma luta muito difícil. Tínhamos um paredão midiático. Todos os grandes grupos jornalísticos, da mídia, eram totalmente contra. E todos chegaram à conclusão de que as políticas de ação afirmativa eram positivas.
E o conceito de mérito eu desmoralizo. O Brasil é um país desse tamanho que não tem um prêmio Nobel. Mas foi campeão do futebol cinco vezes. E essa é uma área em que definitivamente a população negra é maioria.
Os negros também estão presentes na música. Nas duas áreas, em que precisamente os negros não foram impedidos de estar, o Brasil é reconhecido como excelência.
A luta e argumentação nossa é nesse sentido, de que o Brasil ganharia qualidade com a chegada dos negros e isso iria reduzir as desigualdades.
Hoje, é interessante quando vejo negros, alguns conservadores, dizendo que a esquerda capturou o discurso dos negros. Mentira. O que a gente chama de esquerda não esteve conosco nessa luta inicial. Foi uma luta muito solitária.
Que balanço o sr. faz da política de cotas e da educação no país? O que vou te falar não é uma crítica, é uma autocrítica, porque nós não tínhamos alternativa. Era fazer ou não fazer. Mas as ações afirmativas, até hoje, carecem de aperfeiçoamento.
Não quero falar das fraudes, que é o lado mais grosseiro. Mas [com as cotas] ocorre o oposto do IER [Índice de Equilíbrio Racial, no qual o Ifer se baseia], que já traz, em seu conceito, a oportunidade de gestão.
O ensino básico continua muito ruim, mas, se a política de cotas tivesse gestão, poderíamos amarrar o retorno dos graduandos de história, geografia, física, matemática na universidade pública às escolas das áreas periféricas de onde vieram, para retroalimentar o ensino público.
Mas isso não foi feito. Política pública sem gestão é um abandono. Nós tivemos aí governos ditos progressistas e o país não reduziu a desigualdade, porque há um problema de gestão. O país não vai dar certo, não está dando certo com essa opção que fizemos. É um país que se autoatribuiu limites.
O ideal neoliberalista colide de frente com o que chamo de modernização regeneradora. O estado tem papel definitivo nessa mudança, mas você não pode ficar sem o setor privado, que já percebe que somos 212 milhões e que há uma questão racial que o prejudica no longo prazo.
Esse é um momento bom para políticas baseadas no índice de equidade racial, porque o setor privado não pode mais alegar que não tenha negros com nível universitário.
Já o IER que mede o desequilíbrio racial dos estados nos permitirá discutir como melhorar as políticas públicas. Esse indicador de equidade racial é o início do processo para trazermos a questão racial para a centralidade econômica.
O debate racial estará na centralidade do debate eleitoral ano que vem? O Haddad conseguiu ir ao segundo turno em um momento de grande conflagração, em que falavam mal de cotas. Ele foi candidato de todo o movimento negro sem ter colocado, uma vez sequer, a questão racial na agenda. Nenhum setor do movimento organizado negro, nem de longe, estaria com o [presidente Jair] Bolsonaro.
Mas, para 2022, posso dizer que há um esforço sendo feito neste momento do grupo que chamo de independente que vai mostrar para o Brasil que a questão racial é central. A ideia é que o candidato que não tiver propostas, que não perceber que essa é a questão central que impede o país de ter sustentabilidade, procure outro emprego.
O Brasil é gigante, mas de pés de barro. No meu tempo na escola, ouvia que o Brasil era o país do futuro. Mas nosso futuro foi ficando ruim. O número de pessoas vivendo nessas comunidades esquecidas pelo estado, que chamamos de favelas, foi aumentando.
Você vê a entropia absurda do Rio [de Janeiro], onde quase dois terços da cidade são administrados pela milícia. O que de pior poderia acontecer com o Brasil foi essa mistura da política com a milícia.
Como o movimento negro pretende mostrar essa centralidade? Não será só um discurso de cunho ideológico. Pelo contrário. Vamos trazer dados abundantes que o próprio movimento construiu.
Esse volume de negros que colocamos na universidade tem uma produção gigantesca nos campos da saúde, da educação. Queremos mostrar que, longe de ser o problema, a questão racial é a solução.
Helio Santos, 76
É professor e consultor em desenvolvimento humano. Doutor em administração pela FEA-USP, é presidente do conselho da Oxfam Brasil e do Instituto Brasileiro da Diversidade (IBD). Coordenou o GTI, grupo de trabalho que agendou as Ações Afirmativas no Brasil (governo FHC). É autor de “A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso”
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