PM deixou proliferar insubordinação, diz sociólogo
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
As manifestações políticas a favor do presidente Jair Bolsonaro praticadas nas redes sociais pelo coronel da ativa Aleksander Lacerda são graves, mas não surpreendentes, segundo avaliação do diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. Para o sociólogo, o processo de cooptação e mobilização das tropas em nome do projeto político e ideológico de Bolsonaro já não ocorre mais de forma invisível. “Estamos numa fase de radicalização”, diz.
O que surpreendeu o pesquisador foi o fato de o comando da Polícia Militar em São Paulo não ter conhecimento do comportamento público de Lacerda. “A Polícia de São Paulo errou ao não monitorar e barrar logo no começo. Se o comando tivesse sido mais atento, tivesse usado de mais inteligência, liberado um alerta, talvez isso não tivesse acontecido”, afirma Lima.
De acordo com reportagem publicada nesta segunda, 23, pelo Estadão, Lacerda divulgou 397 posts com conteúdo político apenas entre 1º e 22 de agosto. Além de convocar “amigos” para o ato pró-governo do dia 7 de Setembro, o coronel usa as redes para criticar o governador João Doria (PSDB) e outros políticos considerados de oposição, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele também costuma fazer ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Comandante de sete batalhões no interior, ele foi afastado da função e responde agora por processo disciplinar.
As manifestações políticas do coronel Aleksander Lacerda, agora ex-chefe do Comando de Policiamento do Interior-7, reveladas pelo Estadão nesta segunda, comprovam publicamente a contaminação dos quartéis pelo bolsonarismo?
É muito grave esse fato. Desde que Bolsonaro tomou posse como presidente da República que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública vem alertando para um processo, que antes ocorria de forma invisível, de cooptação e mobilização das tropas em nome de um projeto político e ideológico. Agora estamos numa fase de radicalização desse processo. Segundo pesquisa do fórum, se somarmos as polícias civil, militar e federal, 12% dos policiais interagem em ambientes bolsonaristas. O coronel Aleksander Lacerda é um deles. Ele não foi pioneiro entre os oficiais, mas, em São Paulo, não tínhamos tido uma manifestação tão explícita.
O comando da polícia paulista falhou em não perceber e monitorar o comportamento do coronel Lacerda?
A Polícia de São Paulo errou ao não monitorar e barrar logo no começo. Se o comando tivesse sido mais atento, tivesse usado de mais inteligência, liberado um alerta, talvez isso não tivesse acontecido. Era só falar: coronel, não pode, tira. O discurso do Bolsonaro dá certo justamente porque tem plano de contingência.
Ao mesmo tempo, a decisão de afastar o coronel de sua função de comandante foi acertada?
Sim, ele perdeu o comando, era o que neste momento poderia ocorrer. Ele vai ser colocado agora à disposição do comando-geral e pode ir depois para a reserva ou ser alocado em outra função. Agora, é bom deixar claro que ele não foi demitido, isso nem poderia acontecer. O gesto de perder o comando é corretíssimo, já que o posto que ele tinha é político-estratégico e para exercê-lo é preciso estar alinhado ao comando central. Agora, como um comandante se manifestava dessa forma, sem qualquer tipo de constrangimento, em uma rede social e sem o conhecimento do comando, inclusive por parte do governador e do secretário de Segurança Pública?
Que punição agora ele deve ter?
É importante que ele tenha amplo direito de defesa e um processo administrativo aberto para se saber se o que ele fez infringiu alguma norma ou se na verdade ele aproveitou as brechas existentes. Se ele aproveitou as brechas existentes e não há vedação, a responsabilidade é política do governador e da Secretaria de Segurança de não ter pensado que era importante, neste momento de radicalização, ter normas claras. Agora, deve-se revisar os protocolos e as formas de monitoramento.
O fato de o general Eduardo Pazuello não ter sido punido pelo Exército após participar de ato político ao lado de Bolsonaro tem influência?
O caso Pazuello abriu a porteira. Era muito importante ter punido essa ação dele. Se um general não é punido, por que um coronel será? E se o general pode falar por que os demais também não podem? E o coronel Aleksander não está postando desde ontem, anteontem, mas há muito tempo, a matéria mostra isso. Não houve monitoramento. As instituições estão falhando, não percebem que determinados assuntos podem se transformar em coisas muito mais graves.
O caso de Lacerda não é pioneiro, mas é simbólico?
Os oficiais não estão mais vendo problemas em se posicionar dessa forma. O episódio do coronel Aleksander é muito grave porque mostrou que uma das policiais mais disciplinadas do País, a de São Paulo – com investimento histórico na construção de uma imagem de polícia apartidária, de polícia de Estado e não de governo –, não está imune ao processo de radicalização. Mostra ainda que o grau de cooptação está bem avançado.
Como se dá essa cooptação?
Ela ocorre desde o começo do governo, de forma lenta, gradual e eficiente. Bolsonaro já foi a diversas formaturas de policiais, integrantes das Forças Armadas, tentando se mostrar simpático, gente como a gente, um líder que não só tem o comando supremo das Forças, mas é aquele que olha pra gente. Um dos problemas dos policiais – temos mais de 650 mil na ativa – é que muitas vezes eles se sentem abandonados à sua própria sorte. Nessa cooptação ideológica, o próprio Olavo de Carvalho franqueou acesso a seus cursos de forma gratuita a policiais.
É uma estratégia institucionalizada do governo?
O governo é muito mais eficiente em sua estratégia de ocupação de espaços do que a gente imagina. Bolsonaro assedia as forças de segurança brasileiras com um discurso que não é legítimo e que incentiva a ruptura. O que ele quer é ter os policiais como soldados armados, guardas pretorianos à sua disposição. E não só estamos perdendo o controle, como estamos deixando os policiais se sentindo à vontade para exercerem seu ‘direito de expressão’. Ser da ‘ativa’ não é mais considerado um freio, um obstáculo intransponível.
O senhor vê risco de uma eventual tentativa de golpe por parte de Bolsonaro com o apoio das forças de segurança?
O golpe já está em curso. Tudo isso (essa cooptação) faz parte. Qual o grande objetivo do ato convocado para o dia 7 de Setembro? Mostrar força, sim, mas isso depende de várias variáveis, como ter gente na rua. Mas há outro objetivo não declarado, que é provocar confronto. Ainda mais se gerar um saque ou uma depredação em grandes proporções. Isso vai fazer com que ele (Bolsonaro) se sinta à vontade para “dentro das quatro linhas da Constituição”, como ele diz, declarar estado de sítio.
Que resposta a sociedade deve dar?
Não existe uma coisa só a ser feita. Mas um conjunto delas. É preciso reunir universidades, grupos organizados da sociedade civil, imprensa. É preciso mostrar que o golpe não tem adesão na grande maioria da população. Os governadores têm de unir, é bom que isso aconteça, mas também perceber que, a médio prazo, precisam oferecer alternativas reais às estruturas oferecidas hoje aos policiais. E não se trata apenas de salário, mas de plano de carreira e condições de vida e de trabalho. Há de se acabar com essa ideia de que os policiais são abandonados por todos e abençoados por Bolsonaro. E o Judiciário, claro, deve ser o grande obstáculo ao rompimento – e tem sido, há de se dar o destaque. O Judiciário não pode permitir com que a interpretação alargada de que as decisões do governo Bolsonaro ou o comportamento dos policiais são em nome da liberdade de expressão. O que temos visto são ameaças antidemocráticas e assim elas têm de ser nomeadas. Não podemos ter medo de dizer o que cada coisa representa. Se ficarmos com esse medo hoje podemos chegar ao 7 de Setembro com a confirmação de que já vivemos um regime de exceção. As ameaças estão postas e há muito tempo.
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