Bolsonaro recebe negacionistas alemães
Foto: Reprodução
O presidente Jair Bolsonaro se reuniu na primeira quinzena de setembro com dois membros da cena conspiracionista e negacionista da pandemia na Alemanha.
Bolsonaro concedeu uma entrevista para Vicky Richter e Markus Haintz, ligados ao Querdenken (“pensamento lateral” em alemão), movimento que organizou no último ano protestos contra as medidas do governo alemão para frear a pandemia de covid-19. Em abril, o serviço de inteligência interno alemão colocou setores do movimento sob vigilância nacional por suspeita de “hostilidade à democracia e/ou deslegitimação do Estado que oferece riscos à segurança”.
A entrevista com Bolsonaro, concedida pelo presidente em Brasília, foi publicada em redes sociais ligadas a Richter e Haintz nesta segunda-feira (20/09).
A dupla alemã também realizou entrevistas com o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo federal, e a deputada bolsonarista Bia Kicis. Os encontros foram registrados entre os dias 8 e 10 de setembro. A dupla também fez filmagens no ato antidemocrático de 7 de Setembro na Avenida Paulista, em São Paulo, que contou com a participação de Jair Bolsonaro.
Haintz se apresenta como “advogado, jornalista e ativista pela liberdade”. Baseado na cidade de Ulm, ele é uma figura proeminente do movimento Querdenken e costuma usar os protestos negacionistas do movimento para discursar contra o governo alemão e medidas de isolamento. Em agosto, ele chegou a ser detido pela polícia durante um protesto em Berlim.
Várias manifestações do Querdenken no último ano contaram com participação explicita de grupos neonazistas e de extrema de direita, além de seguidores do culto conspiracionista QAnon.
Em abril, ao colocarem setores do Querdenken sob vigilância, as autoridades alemãs mencionaram que essas alas constituem ameaça por questionarem a legitimidade da democracia e do Estado alemão. As autoridades também citaram ligações entre o movimento Querdenken e os grupos de extrema direita Reichsbürger e Selbstverwalter, que negam a existência do Estado alemão ou não se consideram parte dele. O Facebook também já baniu dezenas de páginas ligadas ao Querdenken.
Em outubro de 2020, Haintz foi demitido de uma faculdade de Biberach, onde atuava como professor, por causa das suas atividades no Querdenken. Um administrador da instituição afirmou à época da demissão que as declarações de Haintz legitimam a violência e que o advogado deveria “se envergonhar” pelo seu envolvimento no Querdenken.
Em seus discursos e publicações no Telegram (ele possui 100 mil assinantes), Haintz pinta a Alemanha como “uma ditadura” sob a chanceler federal Angela Merkel.
No entanto, Haintz viu sua posição no movimento ser enfraquecida recentemente após alguns rivais internos passarem a espalhar boatos de que ele trabalha como informante do serviço secreto.
Em uma publicação recente no Telegram, ele afirmou que há “um ataque global contra as liberdades” e que a sua viagem ao Brasil e outros países tinha como objetivo buscar aliados. Nos últimos dias, ele compartilhou no Twitter diversas publicações de Eduardo Bolsonaro e imagens das manifestações antidemocráticas do Sete de Setembro.
Já Richter se apresenta como uma ex-militar da Bundeswehr (Forças Armadas da Alemanha) e possui vários canais negacionistas no YouTube, Twitter e Telegram, nos quais propaga conteúdo antivacinas e teorias conspiratórias. Em uma publicação no Telegram, ela afirmou que conversou com a ministra Damares Alves sobre “a elite cabalística por trás do tráfico de crianças” no mundo e “estupros rituais em comunidades indígenas”, temas que ecoam teorias conspiratórias do culto QAnon.
Outras publicações ecoam o discurso radical da base bolsonarista e parecem ter a intenção de apresentar o presidente brasileiro para o público extremista alemão. Nessas publicações, Bolsonaro aparece como “perseguido” pelo Judiciário e “boicotado” pela imprensa internacional. “O fato de que ele enfrenta comunistas e globalistas desagrada os poderosos”, diz uma publicação.
Outras mensagens tem teor ainda mais conspiracionista, afirmando falsamente que “sete ministros do STF” chegaram a “fugir temporariamente do país” por medo de serem presos por Bolsonaro. Outros textos elogiam a gestão negacionista de Bolsonaro durante a pandemia.
A dupla alemã Vicky Richter e Markus Haintz também participou da fundação do partido Die Basis, uma agremiação negacionista da pandemia surgida em 2020 e que afirma ter quase 30 mil membros. A legenda chegou a disputar uma eleição regional em março, mas não obteve votação expressiva. Richter e Haintz deixaram o partido no início de setembro após disputas internas.
Na entrevista com a dupla alemã, que se estendeu por uma hora, Bolsonaro repetiu mentiras e teorias conspiratórias que ele já havia propagado durante o último ano.
Ele afirmou falsamente que hospitais inflacionaram o número de doentes com covid-19 para receber mais dinheiro, atacou a Coronavac – a vacina promovida pelo governo de São Paulo, chefiado pelo seu rival João Doria –, defendeu tratamentos ineficazes e potencialmente perigosos contra a doença – como a cloroquina – e até mesmo chás medicinais.
Ele também sugeriu que a melhor forma de se proteger contra o vírus é ser contaminado, reiterando novamente a tese da imunidade de rebanho pela infecção. “Eu disse para as pessoas não terem medo, que enfrentassem o vírus”, disse Bolsonaro. “A liberdade é mais importante que a vida”, completou, quando falava sobre sua oposição à vacinação obrigatória.
Bolsonaro também reclamou da TV Globo, se apresentou como “perseguido”, defendeu o armamento da população e mentiu sobre não haver escândalos de corrupção em seu governo.
Já na entrevista com Eduardo Bolsonaro, a dupla Haintz-Richter abordou temas como voto impresso e as manifestações antidemocráticas do Sete de Setembro. O deputado aproveitou a oportunidade para espalhar mentiras sobre as urnas eletrônicas, reclamar da imprensa e se queixar da China.
A entrevista de Richter com Damares, por sua vez, abordou inicialmente a biografia da ministra, mas logo passou para temas mais caros a grupos conspiracionistas. Richter parecia especialmente interessada em práticas de povos indígenas. Damares afirmou que alguns indígenas têm práticas de “estupro coletivo como prática cultural” e “estupro como castigo” para mulheres.
Em uma pergunta, Richter afirmou à ministra que há “uma grande cabala” mundial por trás do “tráfico de crianças” e perguntou se Damares não tinha medo de enfrentar esses supostos grupos. “Eu recebo muitas ameaças de morte”, respondeu Damares.
O termo cabala era originalmente usado para se referir à mística judaica, mas com o tempo antissemitas passaram a usar o termo como sinônimo para “conspiração” ou “complô”. Esse uso de forma derrogatória costuma ser usado tanto por antissemitas quanto por seguidores do culto QAnon.
A dupla ainda se encontrou com a deputada de extrema direita Bia Kicis, uma aliada próxima de Bolsonaro. Eles discutiram supostos riscos da aplicação de vacinas em grávidas e uso de máscaras. “O uso de máscaras faz você perder sua identidade”, disse Kicis, que regularmente publica conteúdo negacionista nas redes. “Eu desejo que os conservadores se aliem e construam uma rede”, afirmou a deputada para os alemães. “Precisamos nos manter juntos e lutar contra o comunismo.”
Essa não é a primeira vez que Bolsonaro e seu filho Eduardo e a deputada Bia Kicis se reúnem com alemães do espectro político populista e extremista de direita. Em julho, o presidente recebeu no Planalto a deputada alemã de ultradireita Beatrix von Storch. Filiada à AfD, Von Storch é uma figura influente da ala arquiconservadora e cristã do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem membros acusados de ligações com neonazistas. Uma organização ligada ao partido também chegou a ser colocada sob vigilância dos serviços de inteligência alemães no início do ano. Neta do antigo ministro das Finanças de Adolf Hitler, Von Storch ficou conhecida na Alemanha por publicações e afirmações xenófobas.
À época, o encontro com a deputada alemã causou ultraje entre organizações judaicas brasileiras.
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