Programa habitacional de Bolsonaro para militares é ilegal
Foto: Dida Sampaio/Estadão
Qual é o problema de o governo lançar uma linha de financiamento de casa própria para policiais? Feita a indagação dessa maneira, a resposta é uma só: nenhum! Dadas as características do que vem a público, incluindo a data, a resposta há de ser esta: há uma penca: seja no que se sabe do programa em si, seja na oportunidade política. Pior: o troço vem à luz por meio de mais uma Medida Provisória e prevê a apropriação, por categorias profissionais, de recursos que pertencem ao conjunto dos brasileiros. Inconstitucional e ilegal. Mas Bolsonaro quer jogar as polícias contra o Supremo e o Congresso. Vamos ver.
O presidente anuncia o programa seis dias depois de sua tentativa de golpe ter dado com os burros n’água. E as PMs estavam no centro da desordem que ele imaginou, o que ensejaria, então, apelos à ordem — à ordem militar. Lembrem-se de que ele chegou a anunciar em Brasília, no dia 7, a Convocação do Conselho da República. Apostou na convulsão social que não aconteceu. Não no dia 7. Mas e no futuro?
A aposta mais errada que se pode fazer é a de que o presidente já se conformou com a democracia e, mesmo na hipótese de uma derrota certa, vai aceitar o seu destino. O seu recuo, e seus porta-vozes informais no esgoto que se confunde com jornalismo o confirmam, é apenas tático. Mas precisa de operadores para isso.
É nesse ambiente que edita uma Medida Provisória — o que é absurdo — com o tal programa “Habite Seguro”. Informa a própria Caixa Econômica Federal, que será o operador financeiro do programa:
“Em todo o país, integrantes do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), como policiais, bombeiros, agentes penitenciários e integrantes das guardas municipais contarão com subsídios e condições especiais para aquisição da casa própria”.
O programa Casa Verde e Amarela, que substituiu o “Minha Casa Minha Vida”, está empacado. Não obstante, o governo lança outro para essas categorias em particular — o que inclui os aposentados — que já não estão mais expostos a risco nenhum. Há, diga-se, outros profissionais contemplados que se submetem aos mesmos perigos, deixem-me ver, de um contador, por exemplo (talvez menos): peritos e papiloscopistas integrantes dos institutos oficiais de criminalística, medicina legal e identificação etc. O critério, como se vê, não é o risco. Miram-se corporações. De olho em 2022,
O programa contém a aberração das aberrações. A própria Caixa anuncia, cheia de orgulho:
“No primeiro ano, o aporte do FNSP ao Programa Habite Seguro é estimado em R$ 100 milhões, que serão destinados ao pagamento de parte do valor do imóvel e da tarifa de contratação do crédito imobiliário, sendo o valor definido de acordo com a renda do profissional”.
Como é que é? Grana do Fundo Nacional de Segurança empregada para financiamento de programa de habitação?
Então vamos ver o que informa ao próprio Ministério da Justiça sobre o objetivo do Fundo Nacional de Segurança:
“O Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), instituído no âmbito do Ministério da Justiça, tem o objetivo de apoiar projetos na área de segurança pública e prevenção à violência, enquadrados nas diretrizes do plano de segurança pública do Governo Federal.
Administrado por um Conselho Gestor, o FNSP apoia projetos na área de segurança pública destinados a reequipamento, treinamento e qualificação das polícias civis e militares, corpos de bombeiros militares e guardas municipais; sistemas de informações, de inteligência e investigação, bem como de estatísticas policiais; estruturação e modernização da polícia técnica e científica; programas de polícia comunitária e programas de prevenção ao delito e à violência, dentre outros.”
Observem que esses recursos devem ser empregados em benefício da população, não dos policiais, por mais merecedores que sejam. É espantoso!
Segundo essa mesma lógica, os recursos do Fundo Nacional de Saúde poderiam sem empregados para construir casas para médicos e enfermeiros. E os do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação poderiam financiar moradias para os professores. Faz sentido?
Pedro Guimarães, presidente da CEF, um militante bolsonarista declarado e sem receios, afirma:
“É maravilhoso esse segmento [da Segurança] ter essa possibilidade, mas qualquer segmento, se qualquer Ministério tiver um fundo parecido [para bancar os subsídios], já está aprovado na Caixa Econômica Federal, até sob as mesmas regras”.
Entenderam? Havendo fundos cujo sentido seja atender às necessidades da população, segundo o presidente da CEF, poderiam ser apropriados para construir casas para os servidores das respectivas áreas. É a cloaca do corporativismo. Fico a imaginar o que não estariam a dizer alguns pistoleiros do bolsonarismo, que se dizem “liberais”, se o PT tivesse recorrido a uma expediente como esse para construir casas para os profissionais da educação, que tendem a ser mais próximos do partido, assim os da segurança constituem, em grande parte, a base bolsonarista.
Informa ainda a Caixa:
“As condições do Programa Habite Seguro estarão disponíveis a partir de 03/11 e os profissionais interessados em solicitar o crédito habitacional deverão comprovar o vínculo empregatício com um órgão de segurança pública. A CAIXA antecipa que disponibilizará orçamento de R$ 5 bilhões por ano para atendimento ao público-alvo, considerando as linhas de crédito ofertadas, com condições especiais conforme estratégia de convênios do banco.”
O informe entusiasmado da CEF — e lembrem-se que Guimarães se insurgiu contra a Febreban porque esta se mostrava disposta a assinar um manifesto em favor do entendimento entre os Poderes — evidencia que o Estado brasileiro está aparelhado pelo bolsonarismo e que entes que deveriam ser independentes podem justificar qualquer coisa.
Bolsonaro poderia pedir que um deputado da base apresentasse um projeto de lei com esse conteúdo. Feito isso, ele daria seu endosso pessoal à tese. Mas não. Opta por uma Medida Provisória, sabendo que ela já viola, de cara, o Artigo 62 da Constituição, que exige que o expediente seja pautado pela “urgência e relevância”. É evidente que “urgente”, no sentido abordado pela Constituição, não é. Mais: a Alínea “d” do Inciso I do Parágrafo 1º veta que MP trate de “planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares”.
A apropriação por categorias profissionais de um dinheiro que pertence ao conjunto dos brasileiros é, obviamente, ilegal.
O texto foi redigido na medida exata para jogar os policiais contra os Supremo caso seja declarada a inconstitucionalidade da MP ou contra o Congresso caso, na conversão obrigatória em projeto de lei, os benefícios meticulosamente pensados para a sua base não se confirmem.
Não temos um governo, o que se evidencia mais uma vez. O que há aí é um bando de arruaceiros dispostos a melar a regras do jogo.
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