Bolsa Família fez famílias vencerem miséria e deixarem o programa

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Foto: Reprodução

Simara Martins cresceu vendo a mãe vendendo pamonhas e fazendo faxina, mas conseguiu mudar de vida. Aos 34 anos, ela não apenas é dona de uma confecção como envia roupas de praia até para a Europa. A fábrica que montou em Taguatinga, no Distrito Federal, conta com sete funcionários e permite à microempresária oferecer ao filho, João Pedro, de 5 anos, um futuro sem as dificuldades que enfrentou. Após anos sendo sustentada com dinheiro do Bolsa Família, Simara integra uma lista de beneficiários que conseguiram achar portas de saída do programa e montar pequenos negócios.

Criado em 2003, o Bolsa Família completa hoje 18 anos e, ao chegar à maioridade, exibe o título de maior plano de transferência de renda do mundo. Os primeiros pagamentos, em outubro daquele ano, contemplaram 1,15 milhão de pessoas. De lá para cá, 795 mil pioneiros do Bolsa Família deixaram o programa, segundo dados reunidos pelo Estadão durante um ano.

Os números, inéditos, mostram que 69% dos primeiros beneficiários não contam mais com o auxílio que hoje paga, em média, R$ 190. Somente uma minoria, cerca de 355 mil pessoas, permanece ou regressou ao cadastro. Os remanescentes da primeira leva representam menos de 3% dos cerca de 14,6 milhões de beneficiários atuais.

Vanilda, 58, mãe de Simara e de outros dois filhos, é uma das pioneiras que saíram do programa porque não queria mais depender do governo. Com o valor de R$ 110 mensais recebido pela família em Unaí, interior de Minas Gerais, ela começou a fazer pamonha para vender. A renda do negócio e a entrada das filhas no mercado de trabalho garantiram sua independência seis anos após ingressar no Bolsa Família.

“Eu morava na minha casinha, inventei de fazer pamonha. As duas filhas mais velhas começaram a trabalhar. A moça da prefeitura disse que eu podia renovar o Bolsa Família. Eu falei: ‘Não, não vou renovar mais. Tem alguém lá fora que precisa mais do que eu. Tem gente aí com filho pequeno’”, contou Vanilda.

De janeiro de 2004 até o mês passado, o governo desembolsou R$ 326,1 bilhões em pagamentos do Bolsa Família, em valores nominais. Em números correntes, o volume alcança R$ 493,5 bilhões, mais do que o valor pago ao funcionalismo federal neste ano.

Ao chegar à maioridade, o programa enfrenta seu maior impasse. Candidato à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro vai trocar o nome do Bolsa Família para Auxílio Brasil e quer elevar o valor pago para R$ 400, mesmo sem recursos. Parte desse dinheiro seria contabilizada fora do teto de gastos. A manobra provocou preocupação no mercado, que reconhece a importância do programa, mas não aceita “aventuras” populistas para financiá-lo (mais informações na pág. B1). Diante das divergências até mesmo com o ministro da Economia, Paulo Guedes, o Palácio do Planalto adiou ontem o anúncio do plano com valores turbinados.

Antes de assumir o poder, Bolsonaro chegou a defender o fim do Bolsa Família. Em 2011, como deputado federal, chamou os beneficiários de “ignorantes” e “pobres coitados”.

A distribuição de recursos da ordem de R$ 30 bilhões tem impacto na economia. Estudos mostram que a renda extra permite o acesso das famílias ao mercado de compras e a serviços. O governo admite não ter informações precisas sobre os desligamentos. Mudanças de titularidade na própria família, mortes e desatualização de dados cadastrais explicam apenas uma parte das saídas. Para pesquisadores, no entanto, a constatação da reportagem de que a maioria dos primeiros atendidos não permanece no Bolsa Família joga luz sobre o impacto positivo do programa na vida de brasileiros em situação de extrema pobreza.

O diagnóstico põe por terra, ainda, a avaliação de que quem recebe os recursos não se interessa em trabalhar. “Se, de imediato, o valor transferido alivia a situação de pobreza e extrema pobreza dos integrantes da família, a médio e longo prazos pode contribuir com o acesso a direitos sociais básicos na esfera da saúde e educação e, por conseguinte, com uma melhor inserção no mercado de trabalho”, disse o professor Jimmy Medeiros, da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC), especializado em Bolsa Família.

Com o conhecimento de quem pesquisa o público do programa há mais de 14 anos, a socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rego vai na mesma linha. “Nos sertões, o Bolsa Família teve um efeito imenso de melhoria na vida das pessoas. Quando digo melhoria na vida, é do ponto de vista delas. Mulheres que tinham zero de renda puderam fazer planejamento de gastos.”

Na prática, o Bolsa Família teve origem em políticas de transferência de renda criadas durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e foi batizado com o nome atual no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que decidiu encaixá-lo no lugar do Fome Zero e unificar ações dos antigos Bolsa Escola e Bolsa Alimentação.

Casos de quem montou seu próprio negócio após passar pelo programa contradizem afirmações de que os beneficiários se acomodam e não querem mais fazer nada. Hoje, os três filhos de Vanilda são empreendedores. “A gente viveu muita coisa difícil, mas não usou essa dificuldade para que nos vissem como ‘coitados’. Pensávamos: ‘Estamos aqui, mas queremos trabalhar’”, afirmou Simara. “Dá orgulho de ver isso depois do que passamos. Minha mãe é muito guerreira e, por causa dela, fomos para esse lado de empreender”.

Vidas maltratadas. Nos últimos meses, o Estadão percorreu cidades de Minas, Goiás e do DF em busca de histórias de pioneiras do Bolsa Família e descobriu vidas maltratadas, que tiveram uma chance com a ajuda do recurso. As mulheres são mais de 90% dos beneficiários do programa. Estudos indicam que elas, de posse do dinheiro, tomam as melhores decisões em favor do grupo familiar. É comum também haver casos que começam a ser enfrentados a partir do auxílio, como os de violência doméstica e dependência dos companheiros.

Nelci Cardoso, hoje com 60 anos, é uma dessas histórias. No início de 2000, ela já tinha sete filhos quando foi abandonada pelo marido em Santo Antônio do Descoberto, no interior de Goiás. A “pensão” se resumia a uma casa com dois cômodos cobertos na cidade que leva o nome do padroeiro dos pobres. As telhas eram emprestadas e precisariam ser pagas mais tarde. Quando a vizinhança não podia ajudar com o básico, por vezes era necessário dar ordem para que os filhos dormissem mais cedo, uma conhecida tática do Brasil miserável para enganar a fome.

O abismo social levou Nelci à primeira lista de pagamentos do Bolsa Família na cidade, em outubro de 2003. O abandono paterno aprofundou atritos familiares e dois dos meninos não frequentavam as aulas, condição exigida para que o benefício fosse pago com valores correspondentes a cada filho. Na época em que mais recebeu, eram R$ 120 mensais, cifra que, a preço de hoje, equivaleria a R$ 317. “Sem o Bolsa Família seria difícil. Comprar água, gás e comida para sete crianças não é fácil. O dinheiro era mais para a alimentação deles. Mas a minha maior satisfação era poder comprar material de escola.”

Só com o benefício Nelci não conseguiria criar os filhos como gostaria. Decidiu, então, deixá-los em casa para trabalhar como doméstica, dormindo na casa dos patrões, fora da cidade. A distância dos filhos foi cruel. Mais tarde, um deles se envolveria com o tráfico de drogas e acabaria assassinado.

Ainda recebendo o Bolsa Família, Nelci retomou os estudos, aos 45 anos. Concluiu o ensino médio, cursou Pedagogia e virou concursada da prefeitura. Hoje, trabalha como agente comunitária de saúde. Duas de suas filhas são professoras e as outras duas têm um salão de beleza especializado em tranças africanas no Guará, cidade-satélite de Brasília. “Conseguimos ver nas tranças essa possibilidade de recomeço”, disse Jennifer Cruz, de 32 anos, uma delas.

O principal impacto do benefício do governo na vida de Jennifer ocorreu quando o auxílio permitiu que os irmãos não mais recolhessem latinhas de alumínio para comprar material escolar. “Durante um período, éramos nós que comprávamos nossos cadernos. Lembro que a gente parou de juntar latinha para comprar”, descreveu.

Ainda em Santo Antônio do Descoberto, a coordenadora do Cadastro Único e do Bolsa Família, Maria José Laurindo, de 36 anos, tem experiência nas duas pontas do programa. “Mazé” recebeu o benefício por dez anos. Mãe de uma menina de 11 e de um rapaz de 20, se formou em Pedagogia. “Assinar o termo de desligamento foi grandioso.”

As famílias que saíram da primeira lista de beneficiários e a vontade das mulheres de mudar as oportunidades das novas gerações contrariam a versão de interesse na reprodução descontrolada para aumentar a bolsa. Apesar da expansão, o Bolsa Família não abraça todos que necessitam. Além disso, é falho ao identificar quem não deveria fazer parte dele. Atualmente, cerca de dois milhões de pessoas esperam em uma fila virtual para entrar no programa.

Estadão

 

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