Com medo da cadeia, Queiroga veta “kit covid”

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Foto: Agência Brasil

Um relatório com diretrizes para tratamento de pacientes com suspeita ou diagnóstico de covid-19 encomendado por Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, e que será submetido à aprovação oficial esta semana, não recomenda nenhum medicamento para uso de rotina contra a doença em seus estágios iniciais ou casos leves.

Na prática, o protocolo rejeita a existência de “tratamento precoce”, hipótese defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante todo o período da pandemia e que se tornou um dos principais pilares da resposta do governo à crise sanitária que já matou quase 600.000 brasileiros.

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 21 de setembro, Bolsonaro mais uma vez exaltou a prioridade dada por seu governo a remédios sem eficácia contra covid-19. “Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial”, disse ele.

O relatório “Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid-19”, ao qual a coluna teve acesso antecipado com exclusividade, traz a resposta. O documento foi elaborado por um painel com mais de duas dezenas de especialistas ao longo de três meses, sob a supervisão da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), do Ministério da Saúde, com base na análise criteriosa de estudos científicos e de diretrizes para tratamento de covid-19 divulgadas por órgãos oficiais de outros países e por sociedades científicas do Brasil e do exterior.

As recomendações são aplicáveis tanto para os serviços de saúde públicos quanto para os privados. O documento será submetido à aprovação do plenário da Conitec nesta quarta-feira (6), e depois ficará disponível para consulta pública durante dez dias. Se o relatório for aprovado, será um reconhecimento oficial de que ainda não existe “tratamento precoce” para covid-19.

A partir daí, se não houver interferência política, o procedimento correto será o Ministério da Saúde recomendar aos médicos brasileiros que não receitem esses medicamentos aos pacientes diagnosticados com covid-19.

Os medicamentos analisados foram classificados em quatro categorias. Nenhum deles cumpriu os requisitos para a primeira delas, que recomendaria seu uso no tratamento de pacientes com suspeita ou diagnóstico de covid-19.

Os anticorpos monoclonais (carisivimabe + imdevimabe, bamlanivimabe + etesivimabe, sotrovimabe e regdanvimabe), já aprovados em caráter emergencial no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), entraram na segunda categoria, que considera que seus benefícios clínicos não justificam o uso de rotina.

Isso porque, apesar de os estudos indicarem que são capazes de reduzir a progressão para doença grave em pacientes de alto risco, os anticorpos monoclonais têm “alto custo, baixa experiência de uso e incertezas em relação à efetividade”, segundo os especialistas —o que significa que sua ação terapêutica não é significativa.

Na terceira categoria estão os medicamentos “não recomendados por ausência de evidência para benefício clínico”. Ou seja, são remédios cuja eficácia no tratamento inicial ou “precoce” de pacientes com covid-19 não foram comprovados por estudos clínicos randomizados de qualidade.

Nesse grupo de medicamentos contraindicados por falta de comprovação científica estão os anticoagulantes, a budesonida, a colchicina, a ivermectina, a nitazoxanida e o plasma convalescente.

Em diversas ocasiões, Bolsonaro defendeu a automedicação com ivermectina. A mais recente delas foi em live na internet no dia 16 de setembro, quando afirmou que, “de vez em quando”, toma o antiparasitário para o que chamou de “tratamento inicial” contra covid-19.

Na mesma transmissão, ele voltou a afirmar que se curou com hidroxicloroquina (remédio indicado para malária, doenças reumáticas e lúpus), quando contraiu covid-19, em 2020: “Ano passado me senti mal e tomei um negócio aí para a malária e me curei no dia seguinte.”

A hidroxicloroquina e a cloroquina, porém, assim como o antibiótico azitromicina, estão na quarta e última categoria, a dos medicamentos “não recomendados por ausência de benefício clínico”.

Ou seja, no caso dessas drogas, os estudos existentes permitem afirmar que elas não funcionam —nem isoladamente, nem ministradas em conjunto — no tratamento de pacientes com covid-19.

A azitromicina, segundo o relatório, pode ser receitada apenas a pacientes que apresentarem suspeita de infecção bacteriana. Já o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina deve ser mantido para quem necessita desses remédios por outros motivos de saúde previstos em bula — o que não é o caso da covid-19.

A elaboração do relatório foi uma demanda do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para “pacificar”, como se diz no meio médico, a questão do suposto tratamento “precoce” ou “inicial” contra covid-19.

Em depoimento à CPI da Covid no Senado, no início de maio, Queiroga evitou responder se concordava ou não com a promoção que Bolsonaro faz do chamado “tratamento precoce” com hidroxicloroquina. “Essa é uma questão técnica que tem que ser enfrentada pela Conitec. O ministro é a última instância na Conitec, então eu vou precisar me manifestar tecnicamente”, disse Queiroga, na ocasião.

O momento de Queiroga se manifestar a esse respeito chegou, agora que o painel de especialistas concluiu o relatório com as diretrizes para tratamento de pacientes ambulatoriais (não hospitalizados) com covid-19.

E isso ocorre poucas semanas depois de Queiroga ter sido duramente criticado por ceder à pressão de Bolsonaro para que o ministério cancelasse a vacinação de adolescentes sem comorbidades, por causa da morte de uma jovem de 16 anos no interior de São Paulo que havia se imunizado dias antes. Conforme foi divulgado em seguida, não há nexo causal entre a vacina e o falecimento da adolescente.

Queiroga retornou ao Brasil esta semana depois de cumprir quarentena nos Estados Unidos, onde testou positivo para covid-19. Durante sua ausência, Bolsonaro insinuou que o ministro teria tomado hidroxicloroquina para se recuperar da doença. Questionado por jornalistas nesta terça-feira (5), Queiroga recusou-se a dizer se havia ou não tomado o medicamento.

A partir de agora, o relatório que descarta a existência de tratamento precoce será submetido à aprovação do plenário da Conitec, do qual fazem parte todas as secretarias do Ministério da Saúde, a Anvisa, o Conselho Federal de Medicina, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.

Desde junho, especialistas convidados pelo Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde reuniram-se semanalmente, sob a coordenação do pneumologista Carlos Carvalho, da Universidade de São Paulo (USP), indicado por Queiroga, para revisar e discutir as evidências científicas para avaliar a viabilidade ou não de se utilizar os medicamentos mencionados acima no tratamento da covid-19 em pacientes ambulatoriais.

Como o próprio relatório aponta, “o painel de especialistas incluiu médicos de família e comunidade, médicos internistas, médico emergencista, médicos intensivistas, cirurgião vascular e endovascular, infectologistas, pneumologistas, endocrinologista e representantes do Ministério da Saúde, universidades, hospitais de excelência e sociedades médicas”.

Entre os integrantes do painel estavam, para citar apenas alguns, o infectologista Alexandre Prehn Zavascki, do Hospital Moinhos de Vento, do Hospital de Clínicas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre; o infectologista Alexandre Naime Barbosa, da Sociedade Brasileira de Infectologia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Associação Médica Brasileira; a infectologista Maura Salaroli de Oliveira, do Hospital das Clínicas e do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, e o pneumologista José Tadeu Colares Monteiro, da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.

Também participaram das discussões do painel dois defensores do tratamento precoce: o biomédico Régis Bruni Andriolo e o endocrinologista Flávio Cadegiani.

O primeiro saiu do painel em julho, quando foi revelada uma gravação em que ele orienta Mayra Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde conhecida como “Capitã Cloroquina”, sobre como responder às perguntas dos senadores em depoimento à CPI da Covid.

Flávio Cadegiani, por sua vez, é autor de um estudo com proxalutamida, um remédio em teste para câncer, contra covid-19. Cadegiani foi denunciado no mês passado à Procuradoria-Geral da República (PGR) pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Ministério da Saúde, por ter ampliado o número de pacientes e de hospitais participantes do estudo sem autorização do órgão. A denúncia destaca que o estudo teve alto índice de eventos adversos graves, seguidos de morte.

Cadegiani participou até o fim do painel de especialistas para a elaboração de um relatório que, ao final, concluiu não haver medicamentos recomendados para tratamento “inicial” ou “precoce” para covid-19.

Uol 

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