Ex-médico da Prevent delata pressão por kit covid
Foto: Pedro França/Agência Senado
Em depoimento à CPI da Covid nesta quinta-feira (7), o ex-médico da Prevent Senior Walter Correa de Souza Neto relatou que havia ordens e pressão na operadora para prescrever os medicamentos do “kit Covid”, mesmo com os profissionais tendo conhecimento de que se tratava de uma fraude.
O médico também relatou pressão pela adoção do tratamento paliativo —para aliviar o sofrimento do paciente até a morte— mesmo quando se julgava haver condições de o paciente ser tratado.
As informações se completam com a fala de outro depoente. Paciente da Prevent, o advogado Tadeu Frederico Andrade relatou que médicos da operadora quiseram e chegaram a determinar o tratamento paliativo, só voltando atrás após grande resistência da sua família, que ameaçou recorrer à Justiça.
“Eu teria meus equipamentos desligados, aplicariam uma bomba de morfina e eu viria a óbito. Minha família se insurgiu, ameaçou buscar a Justiça [para] uma liminar, ameaçou chamar a mídia. E hoje estou vivo”, afirmou. “Sou testemunha viva da política criminosa dessa corporação.”
A CPI destinou a sessão desta quinta para tentar encerrar o caso Prevent Senior. As denúncias chegaram por meio de um dossiê elaborado por médicos da operadora, segundo o qual hospitais da rede eram usados como laboratório para estudos envolvendo a hidroxicloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19.
A Prevent também é acusada de omitir mortes nesses estudos e de obrigar seus funcionários a trabalharem sem máscaras.
Em depoimento à CPI, o diretor-executivo Pedro Benedito Batista Júnior também reconheceu que havia um protocolo para mudar o código da doença, de forma que a Covid-19 deixasse de constar nos prontuários após determinados dias de internação.
Walter Correa de Souza Neto, um dos elaboradores do dossiê, confirmou as denúncias à CPI. O médico relatou que todos sabiam que era uma fraude a narrativa de que o tratamento precoce funcionava e que os pacientes medicados dessa forma não morriam.
“Essa coisa que foi citada de que os pacientes ‘ninguém vai a óbito, ninguém intuba’. Isso já era muito claro, a gente sabia que era fraude”, afirmou.
Souza Neto relatou que há na Prevent uma hierarquia muito rígida que limita a autonomia dos médicos, uma cultura que existe na operadora desde antes da pandemia.
“Eu fui bombeiro militar por quatro meses, experimentei o militarismo, fui policial civil por dez anos. Não havia nessas instituições, mesmo numa instituição militar, uma hierarquia tão rígida quanto acontecia na Prevent”, afirmou o médico, acrescentando que muitas vezes a relação se baseava no assédio moral.
“Então, você se voltar contra qualquer orientação do seu superior significaria represálias importantes, talvez perder o seu trabalho. A gente vivia num ambiente assim em que todas as pessoas ficavam muito receosas de contrariar qualquer orientação.”
Foi nesse ambiente que se deu a determinação para seguir um novo protocolo, que obrigava a prescrição do “kit Covid”. Souza Neto afirma que muitos médicos, como ele, diziam aos próprios pacientes que eram obrigados a prescrevê-los, embora sem acreditar na eficácia.
“Eu não fazia isso [receitar o kit] fora da Prevent, mas, na Prevent, eu chegava a fazer e dizia e avisava sempre os pacientes de que não havia evidência, que aquele era um protocolo institucional”, afirmou. “A recomendação, muitas vezes, era para não utilizar a medicação. Muitas vezes [eu dizia]: ‘utiliza só as vitaminas’. Porque vinham as vitaminas junto com o kit.”
O ex-médico da Prevent também apontou que a cultura da empresa dava mais atenção aos custos do que ao bem-estar do paciente, modelo que sempre foi adotado.
“Algumas condições não são exclusivas da pandemia. São coisas que acontecem na Prevent de forma crônica e que estão inseridas na cultura da empresa. A Prevent Senior, até pouco tempo, acho que usava no comercial deles que eles são especialistas em pessoas, mas eu sempre via a Prevent especialista em números”, afirmou.
Souza Neto disse aos senadores que também havia pressão para a adoção do tratamento paliativo, mesmo quando se notava que o paciente tinha chances reais de sobreviver.
“Muitas vezes no pronto-atendimento, quando você estava internando um paciente, você já era pressionado por aquele médico, que era o guardião, o chefe do plantão: ‘E aí, você já paliou esse paciente? Não, eu não acho que ele é viável. Você não vai pedir UTI, é enfermaria porque já vamos paliar, conversa com a família’.”
O médico relatou um caso pessoal de uma paciente que chegou com uma infecção.
“Eu estava uma vez com uma senhora, que tinha quase 90 anos, estava com uma condição mais grave, mas tinha um estado geral que era bom. Precisava fazer um procedimento relativamente simples, era uma infecção urinária”, afirmou.
Segundo Souza Neto, a paciente foi encaminhada para observação com um pedido seu de internação. Os superiores desse setor, os guardiões, determinam o tratamento paliativo. Os familiares então voltaram ao médico para tentar reverter a situação.
“Esses colegas não eram pessoas malvadas que estavam lá para paliar, mas estavam com uma observação lotada, em uma medicina de guerra, onde o que importa é mais a gestão de recursos e não o paciente, onde a cultura da empresa tem uma leniência muito grande com paliativo”, explicou.
“Eu disse: ‘olha, não aceita, diz que a senhora quer que se faça tudo. Vai lá e diz que a senhora quer que faça tudo’. Essa paciente respondeu super bem e teve alta três dias depois” disse.
Souza Neto destacou que poucos profissionais estava dispostos a denunciar as irregularidades por medo de represálias —as reclamações não poderiam ser anônimas e havia a percepção de que “denúncias contra a Prevent não prosperam”.
Na mesma sessão, o advogado Tadeu Frederico de Andrade, 65, relatou uma grande pressão para que ele recebesse o tratamento paliativo quando esteve internado em um hospital da rede com Covid-19.
O paciente relatou uma série de pressões e irregularidades, como o fato de que um prontuário de outra pessoa foi usado como base para determinar o paliativo a ele.
“Nessa reunião, eles convencem, tentam convencer a minha família de que, pelo prontuário na mão, que eu tinha marcapasso, que eu tinha sérias comorbidades arteriais e que, enfim, eu tinha uma idade muito avançada. Só que esse prontuário não era meu, era de uma senhora de 75 anos. Eu não tenho marcapasso, a única coisa que eu tenho hoje é pressão alta, sempre tive pressão alta”, afirmou.
Andrade disse que teve febre às vésperas do Natal e procurou atendimento. Passou por uma teleconsulta e recebeu em sua casa, por meio de um motoboy, os remédios do tratamento precoce.
“No caso fiz uma teleconsulta, a médica indicou. Ela não chamou de ‘kit Covid’. Ela chamou de tratamento precoce. Eu, como leigo, fiquei cinco dias tomando. Ao invés de melhorar, piorei. Acho que isso é que foi o erro”, afirmou.
O paciente disse acreditar que o período de uso desses medicamentos poderia ter sido usado para um tratamento mais eficaz, uma internação antecipada. Segundo Andrade, ele já chegou ao hospital dias depois com uma pneumonia bacteriana e foi imediatamente intubado.
Ele afirmou que recebeu flutamida, usada para tratamento de câncer de próstata, sem autorização da sua família.
Nesse período, segundo Andrade, sua família foi pressionada a adotar o tratamento paliativo. Os médicos disseram que sua morte aconteceria em alguns poucos dias.
“Esse período de UTI durou praticamente, mais ou menos, uns 30 dias, quando uma das minhas filhas recebe um telefonema da médica informando, comunicando que eu passaria a ter os cuidados paliativos, ou seja, eu sairia da UTI, iria para um chamado leito híbrido e lá teria, segundo as palavras dela, maior dignidade e conforto, e meu óbito ocorreria em poucos dias”, relatou o paciente à CPI.
Foi então que a família de Andrade ameaçou entrar na Justiça e denunciar o caso para a mídia, provocando o recuo da equipe médica. “Era a prática da Prevent Senior para eliminar pacientes de alto custo.”
“Minha família, desconfiando da estrutura da Prevent Senior, contratou um médico particular para fazer a fiscalização de procedimentos internos”, acrescentou Andrade. “Esse médico foi um verdadeiro fiscal dos procedimentos.”
A Prevent Senior, em nota divulgada nesta quinta-feira, negou que tenha iniciado o tratamento paliativo a Tadeu Frederico Andrade sem autorização da família dele.
“Já tornado público via imprensa, o prontuário do paciente é taxativo: uma médica sugeriu, dada a piora do paciente, a adoção de cuidados paliativos. Conversou com uma de suas filhas por volta de meio-dia do dia 30 de janeiro. No entanto, ele não foi iniciado, por discordância da família, diferentemente do que o senhor Tadeu afirmou à CPI.”
“Frise-se: a médica fez uma sugestão, não determinação. O paciente recebeu e continua recebendo todo o suporte necessário para superar a doença e sequelas”, conclui a nota.
Também nesta quinta-feira, os senadores da CPI aprovaram uma nova convocação do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. A oitiva será no próximo dia 18.
A convocação se deu porque o ministro não respondeu dentro do prazo de 48 horas as questões que foram enviadas por escrito pela comissão.
Além disso, foi apontada interferência de Queiroga na alteração da pauta da reunião da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), que não vai mais analisar um parecer sobre o uso da cloroquina para o tratamento da Covid-19.
Antes da sessão, Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, afirmou que vai propor em seu relatório final o indiciamento de Queiroga.
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