Justiça recomendou a mulher agredida pelo marido que se reconciliasse

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Foto: Marcelo Justos

A bacharel em direito Raquel*, 23, diz ter sido agredida, ameaçada e ofendida pelo ex-companheiro durante os cinco anos de relação, inclusive quando estava grávida dele. O filho nasceu, mas a violência não cessava. “Um dia, eu estava com a criança no colo, ele me pegou pelos braços, me sacudiu e ameaçou. Fugi para a casa da minha mãe. Dois anos depois, em 2019, me recuperei do trauma e entrei na Justiça para definir guarda e pensão. Achei que ficaria tudo bem.” Na vara de família de uma cidade do interior de Minas Gerais, porém, Raquel afirma ter sido agredida novamente.

Acreditando que fosse participar de uma audiência de conciliação —nome dado a reuniões realizadas nas varas cíveis para que as pessoas envolvidas cheguem a um acordo—, Raquel foi submetida, sem saber, a uma sessão de constelação familiar, terapia integrativa e terapêutica em que é feita uma dramatização do problema na tentativa de resolvê-lo. Durante a sessão, são recriadas cenas que envolvem e despertam os sentimentos e as sensações que o constelado tem sobre a família.

“Foram conduzindo a situação, e eu sem entender o que estava acontecendo. Disseram que a gente precisava resolver tudo pelo bem do nosso filho. Concordei. Mas aí me mandaram perdoar meu agressor e até pedir perdão a ele para que as coisas fluíssem melhor”, conta.

“Achei que fosse ser acolhida, mas aconteceu o contrário. Fiquei como a ressentida. Se antes disso ele tinha medo de que eu o denunciasse, depois dessa situação, o medo passou. Ele sente que pode continuar me ofendendo, que é o que tem feito nas redes sociais.”

A terapia da constelação familiar foi criada nos anos 1970 e chegou ao Brasil em 1999. Popularizou-se e passou a ser usada pela Justiça desde 2012, em varas de família para casos como divórcio, decisão de guardas de filhos e violência doméstica. A prática é autorizada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) por meio de uma resolução de 2010 sobre “tratamento dos conflitos de interesses”. É aplicada em pelo menos 16 estados, e um dos objetivos é acelerar o andamento dos processos.

Recentemente, porém, vítimas de companheiros violentos, como Raquel, têm se queixado do procedimento e denunciam ser obrigadas a reviver o trauma —além de não serem ouvidas em sua dor.

Juristas pioneiros na área ouvidos por Universa afirmam que a situação à qual Raquel foi submetida não está de acordo com os preceitos da teoria sistêmica, da qual faz parte a constelação familiar e deu origem a área do Direito Sistêmico dentro do Judiciário.

Primeiro juiz a adotar o método em uma vara no Brasil, Sami Storch, de Itabuna, na Bahia, afirma que o desconhecimento na aplicação da prática leva a erros na condução.

“Não há obrigatoriedade, é um convite, opcional. E na constelação não existe isso de ter que perdoar ou pedir perdão para agressor. Se isso aconteceu com alguém, foi imperícia de quem estava aplicando. Há necessidade de maior capacitação do que é adequado e responsável.”

Juiz da vara de violência doméstica e familiar contra mulheres do TJ-MT (Tribunal de Justiça do Mato Grosso), Jamilson Haddad Campos foi o primeiro a implantar exercícios sistêmicos, baseados na teoria das constelações, em casos envolvendo a Lei Maria da Penha. Campos reitera que nenhuma pessoa é obrigada a participar de uma sessão e que o objetivo não tem a ver com perdoar alguém.

Nas varas de violência doméstica, esses exercícios, explica, devem ser adotados para que a mulher faça uma reflexão sobre a situação que vive, já que muitas vezes não percebe estar um relacionamento abusivo. E consiga, então, dar um fim ao ciclo de agressões em que está inserida. “A constelação não visa a revitimização da mulher, e, sim, a tomada de consciência para o rompimento de relações abusivas e o fim desse ciclo”, explica o juiz.

Para a mineira Paula*, 45, passar por um exercício sistêmico foi essencial para conseguir de sair de um casamento de 11 anos em que os últimos seis foram vividos sob ameaças, xingamentos e humilhações. “Não conseguia vencer a dependência emocional e financeira. Mesmo sabendo que ele me fazia mal, sendo humilhada, permanecer na relação era um sentimento mais forte do que eu”, diz.

Após ouvir do ex que seria morta por ele, fez uma denúncia e abriu um processo de violência doméstica. Foi então convidada para participar de uma sessão, onde se deu conta de que, por causa da dor e do risco de vida que a relação gerava, era urgente que se separasse. “Consegui. Pouco tempo depois, fiz minhas malas e fugi de Minas Gerais. Hoje moro no Mato Grosso, feliz com meus dois filhos.”

Para o agressor, o benefício da técnica é perceber que ele está causando mal à mulher, aos filhos e à sociedade como um todo. “Nos encontros, falo sobre cultura machista, sobre relações abusivas. Os homens chegam muito revoltados, achando que estão sendo injustiçados, colocando toda culpa na mulher. Depois que participam dos exercícios sistêmicos, entendem por que estavam nesse processo. Acontece de se dar conta de que ele, muitas vezes, está repetindo um padrão que, quando criança, via em casa”, diz Campos.

Vice-Presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Santo André, a advogada Vanessa Tadeu Paiva, que também atua em casos de violência doméstica, explica que a constelação familiar não exime o agressor de uma punição, se for o caso.

“Tudo precisa ser feito nos parâmetros legais. A constelação não tira a aplicação da lei, mas trabalha a consciência —até para que, depois de cumprir sua pena, ele possa mudar suas atitudes. E a mulher, reconstruir sua vida com novos parâmetros.”

Segundo Paiva, o que é visto como sucesso no uso da prática é o fato de as pessoas entenderem as suas responsabilidades dentro de um conflito e não apenas ganharem uma causa. Ela afirma, ainda, que na cidade de Parobé, no Rio Grande do Sul, foi feito um estudo publicado pelo CNJ mostrando que, em três anos, 94% dos casos de violência doméstica não tiveram reincidência após a adoção das constelações.

A advogada, porém, diverge dos juízes ao ver sentido para os pedidos de perdão durante o processo. “O ponto de pedir perdão ao agressor é o de reconhecer a parte dela no mecanismo que foi criado dentro do relacionamento”, diz, sugerindo que a mulher tem responsabilidade pela agressão que sofreu.

“Elas reclamam que estão expondo a história de novo, e isso é revitimizar. Mas ela vai precisar expor diante de um juiz, do promotor, dos seus advogados.”

Psicóloga, especialista em violência doméstica e intrafamiliar e pesquisadora do sistema de Justiça na UFMA (Universidade Federal do Maranhão), Artenira Silva e Silva é “radicalmente contra” a prática, pelo risco de revitimizar a mulher.

“Ter que pedir perdão ao agressor é a máxima atrocidade, é uma crueldade. É uma ação que, em vez de gerar resultado positivo, gera um dano de difícil ou irreversível reparação”, afirma. “É uma violência institucionalizada que não serve para arrefecer o litígio, mas, sim, potencializá-lo.”

Silva explica que tem sido comum juristas se especializaram na terapia. Mas afirma que, com isso, “maculam o princípio fundamental da imparcialidade”. “Estão tentando inventar a roda para diminuir a complexidade dos casos quando, na verdade, podem estar violando os direitos das mulheres”, opina. Para ela, a prática das constelações deveria ser banida completamente do Judiciário.

A advogada de Raquel, Mariana Tripode, afirma que tem outros casos similares ao dela de mulheres de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Em um deles, a mãe denunciou o marido por abuso sexual da filha, uma menor de 14 anos, e ouviu que tinha responsabilidade no caso por não ter dado a devida atenção ao homem.

Vítimas relatam, ainda, haver uma coação para que participem das constelações e que enfrentam constrangimentos quando negam. A administradora hospitalar Roberta*, 56, de Brasília, foi convocada para uma, mas seu advogado, sabendo que ela não queria reencontrar o agressor, negou a participação.

“Quando cheguei à audiência, ouvi da juíza: ‘A senhora acha que é quem para negar a constelação familiar?'”, relembra. “E ela repetia: ‘Enquanto o pai pensa no bem da filha, a senhora achou melhor passear em shopping. Quer pedir o que mais?’. Fiquei muito nervosa.”

O casal se separou em novembro de 2017. Em abril daquele ano, em um dos últimos episódios de violência do qual foi vítima, Roberta foi espancada pelo marido, deslocou o maxilar e perdeu três dentes. “Até hoje tenho pavor de joia. Porque ele me agredia e depois me presenteava com colar, anel.”

Procurado pela reportagem sobre os relatos das vítimas, o CNJ afirmou que a Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas pediu para que seja feita uma regulamentação do uso da prática no Judiciário. O pedido está em tramitação.

“Por conta de o assunto estar sendo debatido e em breve deliberado pelo plenário, o Conselho Nacional de Justiça não vai se manifestar no momento sobre o tema”, disse.

Os tribunais de Justiça de Minas Gerais e do Distrito Federal e Territórios foram procurados para comentar os casos. O primeiro se posicionou por meio do juiz Clayton Rosa de Resende, do Cejusc (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania). Resende afirma que o caso citado na matéria “é totalmente desconhecido” e que não tem “informação de que alguém tenha trabalhado com constelação” na cidade em questão. Também afirma que, desde março de 2020, uma regulamentação foi criada para que se sigam várias diretrizes na aplicação do método.

Em relação ao episódio narrado por Raquel, que afirma ter sido obrigada a pedir perdão ao agressor, o juiz esclarece que a constelação “não faz isso” e que essa “não é a finalidade” da técnica. “Esse é um caso pontual no contexto. Pode ter sido mal empregada pelo constelador ou ter havido má percepção da mulher. A grande maioria tem muito sucesso. Mas eventuais desvios podem e devem ser apurados pela corregedoria”, afirma. “A única finalidade é ajudar os envolvidos do sistema familiar na melhoria das relações. Não se pode agravar a situação das pessoas.” Ele explica, ainda, que o método não é utilizado em casos de violência doméstica.

O TJ-DFT respondeu à reportagem por meio da juíza Magáli Dellape Gomes, titular da Vara Civel, de Família de Órfãos e Sucessões do Núcleo Bandeirante. “No TJ-DFT houve o Projeto Constelar e Conciliar de 2015 a 2018 em alguns juízos, contudo o projeto foi suspenso no início de 2018, após finalização da pesquisa que o embasava. A prática era utilizada em sessões voluntárias e exclusivas para as constelações e apenas em processos de família, onde se discutiam divórcio, guarda e alimentos. Não houve qualquer punição ou prejuízo para quaisquer das partes que não compareciam, sequer constava nos processos a ausência.”

Em relação aos juizados de violência doméstica em que o método foi utilizado, diz que “nos casos em que foi aplicada a constelação nunca foram juntados vítima e agressores na mesma sala de atividade, nem ninguém foi obrigado a comparecer ou a participar da dinâmica, que era voluntária.” Por fim, explica que, nas audiências de conciliação é possível obter uma média de acordo em 52% dos processos, sendo que, quando as partes compareciam à sessão de constelação, a média era de 67%.

Uol  

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