Prefeituras gastaram fortunas com “cloroquinas” neste ano
Foto: Divulgação/Ministério da Defesa
Na onda do ineficaz “tratamento precoce”, promovido e indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra o coronavírus, prefeituras e governos estaduais elevaram a níveis inéditos as compras em licitações de cloroquina e ivermectina (usados no “kit Covid”).
Levantamento feito com exclusividade pela Conlicitação em diários oficiais e sites públicos para o Metrópoles mostra que prefeituras lançaram pelo menos 404 licitações de 1º de janeiro a 30 de setembro deste ano, com o objetivo de comprar ivermectina.
O dado representa um aumento de 562% em relação aos 61 editais municipais publicados em todo o ano de 2019 para comprar o mesmo remédio.
Ivermectina é indicada pelos fabricantes e por pesquisas médicas para tratar vermes parasitas, mas municípios seguiram orientações do Ministério da Saúde, para usar o composto também no tratamento contra o coronavírus.
Governos estaduais também lançaram 88 editais neste ano para comprar ivermectina, contra 41 licitações em 2019.
O levantamento da Conlicitação também mostra que prefeituras fizeram ao menos 94 certames para comprar cloroquina (ou hidroxicloroquina) neste ano, contra 16 licitações realizadas em 2019, uma alta de 488%.
Governos estaduais também publicaram 37 avisos de compra do medicamento, contra 32 editais divulgados em 2019. A cloroquina é indicada por fabricantes e pesquisas médicas para tratar malária e doenças reumáticas como lúpus.
Compras de ivermectina e cloroquina foram propagandeadas como parte do chamado “kit Covid”, do qual o presidente Jair Bolsonaro virou o mais famoso divulgador, chegando a promover a cloroquina em suas transmissões semanais pelo YouTube e até em um passeio em que se deixou fotografar exibindo uma caixa de cloroquina para emas do Palácio da Alvorada.
Enquanto reclamava de medidas restritivas às atividades comerciais, impostas por alguns prefeitos e governadores, Bolsonaro chegou a eleger a cidade de Chapecó, do interior de Santa Catarina, como exemplo de aplicação do “tratamento precoce” e de manutenção das atividades comerciais sem nenhum tipo de restrição sanitária.
Só neste ano, sob o comando do prefeito bolsonarista João Rodrigues (PSD), Chapecó, cidade de 227 mil habitantes, lançou cinco pregões de compras desses medicamentos. Em 16 de agosto, quando a CPI da Covid já avançava em tentativas de responsabilizar autoridades que promoveram tratamentos ineficazes, Chapecó recebeu propostas para a compra de 30 mil comprimidos de hidroxicloroquina e 44 mil comprimidos de ivermectina.
Em cinco pregões eletrônicos realizados ao longo de 2021, a prefeitura encomendou no total a aquisição de 63 mil comprimidos de cloroquina e de 189 mil comprimidos de ivermectina.
“Médicos pedem, e a secretaria disponibiliza cloroquina e ivermectina. Se precisar, vou comprar de novo”, justificou o prefeito em entrevista ao Metrópoles. “Nesse ambiente está todo mundo errado e está todo mundo certo. Quem sataniza tratamento precoce está errado. Quem sataniza vacina está errado”, relativizou.
Chapecó não foi a única cidade que persistiu nas compras de cloroquina e ivermectina depois do início da vacinação. Leme, cidade de 105 mil habitantes do interior de São Paulo, chegou a ter suspenso pela Justiça um pregão eletrônico anunciado em abril deste ano, em que pretendia gastar cerca de R$ 2 milhões com medicamentos do kit Covid, incluindo 15 mil comprimidos de cloroquina e 120 mil comprimidos de ivermectina.
Ainda assim, em agosto, a prefeitura de Leme lançou novo pregão eletrônico, em que, além de outros medicamentos, foi encomendada a compra de 5 mil comprimidos de cloroquina e de 150 mil de ivermectina.
Também no interior de São Paulo, a prefeitura de Presidente Epitácio, cidade de 44 mil habitantes, realizou pregão eletrônico no fim de abril deste ano, “para atender ao Centro de Atendimento para Enfrentamento da Covid-19 e as demais unidades de saúde municipais”, em que estavam encomendadas a compra de 500 caixas de cloroquina (com 6 comprimidos cada) e mil caixas de ivermectina (com 4 cápsulas cada).
O atual secretário municipal de Saúde de Presidente Epitácio, José Carlos Botelho Tedesco, afirmou que a compra foi feita antes de sua gestão, mas alegou que o “kit Covid” jamais foi aposta da prefeitura.
“Em alguns casos foi receitado, mas não era o norte. Não era essa a aposta. O médico tem liberdade, e o município não tolheu”, afirmou Tedesco.
Só que em Presidente Epitácio uma paciente que sofre de síndrome de Sjögren, doença tratada habitualmente com cloroquina, ficou sem acesso ao medicamento na prefeitura, como revelou reportagem do Metrópoles.
A alegação da prefeitura foi de que a cloroquina não tinha fornecimento público previsto para essa doença, embora seja o tratamento indicado para a paciente por médico da prefeitura. “O Estado e a administração pública só podem fazer aquilo que está na lei. Ela deve ter pedido o medicamento e não havia recomendação para essa doença. Mas não posso falar do caso em si com propriedade por não ter participado”, afirmou Tedesco.
Além de compras próprias, estados e municípios também receberam cloroquina e ivermectina comprados pelo governo federal.
Ao avaliar a situação de gestores públicos que insistem em comprar medicamentos como cloroquina e ivermectina para supostamente tratar coronavírus, o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira do Direito Público (SBDP), disse que se tratam de exemplos de desperdício de dinheiro público que podem motivar punição na Justiça por ato de improbidade administrativa.
“Não se justifica juridicamente a aquisição desses medicamentos com o objetivo de prevenir ou combater a Covid-19 em um momento em que sua ineficácia para esse fim já tenha sido comprovada. É um caso de lesão ao patrimônio público, que tem de ser reparado pelos responsáveis. Se houver comprovação de má-fé, os agentes públicos responsáveis podem ser punidos por ato de improbidade com lesão ao erário”, afirmou Sundfeld ao Metrópoles.
Procurador da República, Adjame Alexandre Oliveira avalia que compras públicas de medicamentos ineficazes para a Covid-19, com o objetivo de supostamente tratar o coronavírus, indicam não só ilegalidades mas também possíveis crimes.
“Isso não passa de instrumento de promoção política desses prefeitos, usando dinheiro público para isso. É um desperdício que tem reflexos do ponto de vista de responsabilização administrativa e numa pesquisa maior pode revelar até responsabilidade cível e criminal”, afirmou.
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