SUS está deixando faltar remédios para casos graves
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A vida de um paciente que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) não é fácil. O Brasil tem a maior rede de saúde pública do mundo, e cerca de 70% da população precisa do governo para receber tratamento de qualquer condição – inclusive câncer ou doenças raras.
Depois de esperar a aprovação de um medicamento pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a análise da Conitec sobre a incorporação do remédio e a negociação lenta para a compra, ainda assim o fornecimento não é garantido.
A falta de medicamentos no SUS é comum, e alguns remédios têm um fornecimento considerado “errático” pelas associações de pacientes. Enquanto o tratamento não chega nas farmácias de alto custo — e em alguns casos, o atraso é de meses –, a doença não espera.
No caso de medicamentos para esclerose múltipla, por exemplo, a demora faz com que a doença progrida para sintomas impossíveis de serem revertidos. Para pacientes com câncer, a espera pode significar o crescimento do tumor ou a disseminação dele por outros órgãos. O tempo é essencial.
“A falha no fornecimento de medicamentos de alto custo que já estão incorporados é algo bem comum, e se agravou durante a pandemia. Temos um grande número de pacientes sem medicamento e não há previsão de reabastecimento”, afirma Amira Awada, vice-presidente do Instituto Vidas Raras, que representa pacientes.
Amira reclama da falta de transparência do Ministério da Saúde sobre o assunto. Segundo ela, quase sempre os pacientes ficam sem saber ao certo o que aconteceu, em que parte o processo de compra falhou e quando o remédio irá chegar. “Em doenças crônicas, ou nas raras, a falha é crucial, impacta terrivelmente os pacientes e suas famílias”, lamenta.
Diagnosticada com esclerose múltipla em 2009, Lucianna Maria dos Santos, 35 anos, recebe tratamento pela rede pública. Ela conta que, desde o primeiro contato com a farmácia de alto custo, o fornecimento tem sido complicado e cheio de burocracias. “São vários trâmites, pedem muitos exames e relatórios, sempre falta alguma coisa. Demorei quatro meses para conseguir o remédio, mas ‘vira e mexe’ está em falta”, explica.
Um dos remédios que a professora precisa ficou em falta por três meses. O remédio chegava e, em seguida, o fornecimento era interrompido. Após três meses sem o medicamento, ela percebeu piora ao caminhar. “A gente precisa de tratamento contínuo. Quando não tem, corremos risco de ter um surto forte e de aparecerem sequelas irreversíveis. É sempre um transtorno, uma aflição”, desabafa.
A esclerose múltipla é uma doença neurológica autoimune que ataca a bainha de mielina dos neurônios. Em Lucianna, os sintomas são fraqueza, dormência, perda de força nas pernas e dificuldade para caminhar.
Pelas regras do SUS, a compra de medicamentos é tripartite, ou seja, é dividida entre a União, estados e municípios. Remédios mais caros, que vão causar um impacto maior no orçamento, normalmente são responsabilidade do Ministério da Saúde — fórmulas para doenças raras, insulinas, contraceptivos orais e injetáveis e medicamentos para condições endêmicas (tuberculose, hanseníase e malária, por exemplo) entram na conta do governo federal.
Remédios de uso corriqueiro, como dipirona, ibuprofeno e para hipertensão, por sua vez, são responsabilidade dos estados e municípios. A ideia é descentralizar a compra, garantindo uma melhor gestão do estoque e da logística.
No Brasil, a precificação dos medicamentos é feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), um órgão interministerial ligado à Anvisa. A entidade é responsável por decidir um valor máximo dos remédio, estimular a concorrência no setor, monitorar a comercialização, aplicar penalidades quando as regras são descumpridas e fixar um desconto mínimo obrigatório para as compras públicas.
Um estudo da Universidade de Brasília (UnB) afirma que 76% dos medicamentos que faltam corriqueiramente no SUS são itens comuns, cuja demanda é conhecida e, por isso, deveriam estar disponíveis sem tantos problemas.
“Há vários motivos para explicar essa situação. Em alguns casos, é uma questão de falta de insumo para fabricar o remédio, em outros, problemas de compra mesmo, que vão desde falta de recurso à programação. A burocracia do processo também impacta”, explica o pesquisador Rafael Santana, professor do Departamento de Farmácia da UnB.
O processo de compra de remédios é feito por licitação e muitas coisas podem dar errado neste caminho. Além de não encontrar ofertas (situação chamada de “deserto”), pode haver problemas na definição de preço, na documentação legal e na entrega do produto pela indústria. Também pode haver uma dificuldade ou inépcia do governo em se planejar.
Assim como Amira, Santana reclama da falta de transparência do processo, que não permite que a população acompanhe o que está acontecendo, qual medicamento está em falta, em qual fase da compra está a licitação, se houve algum problema e o que está sendo feito para solucioná-lo.
“Até temos dados sobre os pacientes, mas falta investir em tecnologia para monitorar a logística, as oscilações de demanda, e otimizar os processos entre estados e municípios. Para se ter noção, o nosso estudo sobre falta de medicamentos trabalha em cima do que a imprensa denunciou, porque não temos acesso aos dados”, explica.
A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde para questionar os motivos da falta de abastecimento de alguns remédios no SUS, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. A Comissão Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) também foram procurados pelo Metrópoles, mas não se posicionaram.
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