Bolsonaro troca presidencialismo de coalisão por presidencialismo de corrupção

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Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

O cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), avalia que o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), tentará substituir o orçamento secreto, paralisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A liberação sigilosa de emendas orçamentárias, avalia, é parte de um pacto entre o presidente Jair Bolsonaro e o Centrão. Esse acordo, analisa, viabiliza a continuidade da dominação de Lira na Câmara e do Centrão no Congresso e no Executivo pelos próximos anos. Garante ainda condição eleitoral “menos desvantajosa” para Bolsonaro no ano que vem.

“Ele (Lira) continuará tentando. Não desistirá”, afirmou Lynch, por e-mail, pouco antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) formar maioria para manter a liminar da ministra Rosa Weber que paralisou a liberação de emendas sem identificação – o mérito ainda será julgado.

O orçamento secreto virou a principal arma para o Executivo construir maiorias na Câmara?
No mundo ideal, o governo tem um partido ou uma coalizão majoritária ideologicamente homogênea, reduzindo seus custos de governabilidade ao mínimo necessário. No Brasil, predomina um quadro de pulverização partidária que conta com agremiações e políticos que alugam apoio a qualquer governo em troca de benefícios que lhes facilitem a reeleição ou o enriquecimento pessoal. O presidencialismo de coalizão que serviu de base aos governos da Nova República desde FHC colapsou com a crise da representação política depois de 2013, que legitimou as pretensões de tutela do Judiciário nos anos seguintes. A eleição de 2018, com a ascensão conservadora, traduziu-se em um desejo enorme por parte do Legislativo e do Executivo de recuperarem a independência perdida. Esse desejo manifestou-se frequentemente pela aspiração de substituir a ascendência do Judiciário pela do Executivo. Felizmente, Bolsonaro e sua equipe são autoritários tão ineptos quanto amadores. Depois de alugar a administração sucessivamente aos olavistas e aos militares, blefando com o golpismo para não cair, enfim Bolsonaro abraçou os velhos companheiros do Centrão, grupo de partidos conservadores, pragmáticos e patrimonialistas. Foram eles que ofereceram a Bolsonaro um modelo de governabilidade baseado no velho presidencialismo de coalizão, ainda mais corrompido, porém, que aquele denunciado como vigente à época dos governos do PT. Trata-se de reeditar o mensalão, que eles conheciam muito bem, com a diferença de se tratar de dinheiro do orçamento. Foi a boia que salvou o governo Bolsonaro do despenhadeiro depois dos excessos do 7 de setembro.

Por que parece, para a opinião pública, não haver outra maneira para o Executivo montar sua base no Congresso a não ser por meio da liberação de verbas?
O presidencialismo de coalizão funciona na base de incentivos criados pelo governo para persuadir congressistas mais pragmáticos a se juntarem à sua base parlamentar nas votações dos projetos mais importantes de sua agenda. Quanto mais homogênea for a coalizão, a disciplina partidária e menor o número de partidos, mais natural e menos custosa tende a ser a coalizão. Ora, Bolsonaro sequer tem partido e se elegeu contra o sistema político-partidário. Tirando seus radicais de estimação, ele não tem ninguém “natural” em sua base. Então o custo de “persuadir” uma maioria é simplesmente monumental, exigindo caminhões de dinheiro público a cada votação relevante. Diga-se de passagem que a “normalização” de Bolsonaro depois de 7 de setembro se deve justamente à necessidade de aproximar seu conservadorismo da média do Centrão, que não é radical, e reduzir um pouco o custo dos congressistas de apoiar seu governo no Congresso. Neste quadro estratégico, a PEC do Calote é fundamental porque, ao viabilizar o Auxílio Brasil sem sacrificar as cotas orçamentárias dos próprios congressistas, criará condições para reduzir a enorme vantagem eleitoral do ex-presidente Lula junto ao eleitorado mais pobre, especialmente no Nordeste. Sem ela, atrelados a Bolsonaro, políticos nordestinos como Ciro Nogueira e Arthur Lira ficam em grande desvantagem eleitoral em seus respectivos Estados. O custo de se opor a Lula se torna proibitivo. Por isso também precisam do Auxílio Brasil. Trata-se de uma questão de vida ou morte.

Qual é o papel do presidente da Câmara, Arthur Lira, nesse processo?
Lira é um político conservador e autoritário, mas competente, que viabiliza a operação governista na Câmara. Ele é ali o verdadeiro líder do governo, que tenta viabilizar a ressurreição turbinada do presidencialismo de corrupção, que é o pilar do pacto celebrado entre o Centrão e Bolsonaro. Pacto que cria condições de sobrevivência para a dominação de Lira na Câmara e do Centrão no Congresso – e portanto, no Executivo – pelos próximos anos. E que também assegura condições eleitorais menos periclitantes para Bolsonaro, que com ele chega em posição menos desvantajosa à eleição de 2022.

Se o orçamento secreto realmente cair, o que poderá acontecer especificamente com a PEC dos Precatórios? E com outros projetos de interesse do Executivo?
O orçamento secreto é o combustível que assegura maioria qualificada ao governo na votação da PEC do Calote. A perspectiva de que o combustível acabe desestimula muitos deputados a acompanharem novamente o governo. Por isso mesmo, enquanto vilipendia o suposto “ativismo” do Supremo, Lira já acena com a possibilidade de criar mecanismos equivalentes para os seus clientes. Ele continuará tentando. Não desistirá.

Quais seriam as consequências, para a candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição, de uma interrupção do orçamento secreto e da rejeição ou inviabilização da PEC dos Precatórios?
O tal auxílio sairá de qualquer jeito, mesmo que aos trancos e barrancos, com prorrogação do estado de calamidade ou outro meio qualquer. Tanto que o decreto de sua criação já saiu. Ainda que o resultado seja pífio, o importante é a narrativa de que se fez alguma coisa. A inviabilização de um mecanismo de cooptação parlamentar poria em xeque o pacto entre o Centrão e Bolsonaro. Levaria metade dos centrônicos a aderir a Lula, e o presidente, a retomar sua pantomima golpista antissistêmica. O mais provável, porém, é que Lira encontre equivalentes funcionais do orçamento paralelo. E vai contar com o desgaste que o STF teria de novamente invalidá-lo.

Mais uma vez, o STF estaria exercendo um papel político e contendo a atuação do governo Bolsonaro e seus aliados? Ou é uma atuação é puramente técnica?
É preciso distinguir aqui política de partido. O exercício da jurisdição constitucional é sempre político, no sentido nobre da palavra, porque envolve frequentemente temas políticos. Impedir que o Executivo e o Legislativo transbordem de seus limites constitucionais é uma atividade política. A Corte também julga politicamente no sentido de calcular os efeitos de sua decisão sobre o sistema político e sobre a administração. É o tal “consequencialismo”. Ocorre que, por vezes, os ministros podem exorbitar seus próprios limites, como ocorreu frequentemente durante a “revolução judiciarista” entre 2013 e 2017. Não foi à toa que das eleições de 2018 irromperam um Executivo e um Legislativo envenenados de antijudiciarismo – ou seja, de desconfiança e rancor contra o Judiciário., é que seriam o tal “poder moderador”. Nesse contexto, o Supremo deve agir com prudência para não exorbitar como exorbitou no passado. Nem por isso, porém, deve se deixar emascular. Creio que o Supremo tem exercido bem esse papel prudente, mas firme, de 2019 para cá, contendo os arroubos autoritários e guardando o primado da Constituição contra os arroubos conservadores e autoritários dos demais poderes. Foi só com ele que a democracia pôde contar. O tribunal parece ter se conscientizado que, mais do que promover o bem, seu papel por excelência é o de evitar o mal.

Estadão 

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