Medida apoiada por Lira e Bolsonaro protege e estimula a corrupção
Foto: Beto Barata
Projeto aprovado no Congresso e já sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro muda todo o regramento de uma das leis mais utilizadas por promotores e procuradores na fiscalização de órgãos públicos pelo país.
A Lei de Improbidade Administrativa, em vigor há quase 30 anos, passará a ter novas definições de irregularidades e parâmetros para sua aplicação.
A tramitação do projeto no Congresso foi farta em polêmica, a começar pelo papel de seu principal entusiasta, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Condenado em segunda instância por improbidade em Alagoas, ele deve se beneficiar da mudança nas regras e se livrar de acusações.
Em meio à pandemia, o projeto foi retirado em junho de uma comissão onde era discutido havia três anos e levado ao plenário da Câmara, onde foi aprovado com facilidade. No Senado, houve modificações, mas também passou com folga. A Câmara, por fim, votou versão final no último dia 6.
Para os críticos, a versão aprovada dificultará muito qualquer tipo de punição, ampliando a sensação de impunidade na sociedade.
Seus idealizadores, no entanto, afirmam que os ajustes são necessários para evitar um “apagão de canetas” —falta de interessados qualificados para ocupar funções públicas em razão da possibilidade de punições por má gestão.
Dizem que o texto antigo era pouco específico, com amplas possibilidades de interpretação, provocando insegurança jurídica.
Diferentemente do que ocorre na esfera penal, essa norma não prevê a possibilidade de prisão, mas sim de perda de função pública, suspensão de direitos políticos e de ressarcimento de prejuízos. Nesse tipo de processo, não há o foro especial, e todos os governantes são processados nas instâncias inferiores.
Entre as principais mudanças estão novos prazos de prescrição e a necessidade de se configurar o dolo.
Os defensores do projeto argumentam que ele tem trechos que endurecem a lei, como ao ampliar para 14 anos a suspensão dos direitos políticos
A nova versão da lei estabelece que só há improbidade administrativa com dolo, ou seja, quando ficar provado que houve a intenção de cometer a irregularidade.
Anteriormente não havia essa distinção, e políticos reclamavam que havia o risco de processos com base nessa norma por eventual equívoco de gestão ou discordância do Ministério Público sobre a aplicação de recursos.
O voluntarismo de promotores e procuradores na proposição de ações sempre despertou críticas.
Em plenário, o relator do projeto, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), disse que medidas negligentes ou imprudentes, ainda que causem danos ao estado, não podem ser consideradas improbidade “pois falta o elemento da desonestidade”.
Prefeitos argumentam que era preciso limitar a improbidade à má-fé, excluindo casos de erro administrativo, como forma de ampliar a segurança jurídica.
A Associação Nacional dos Procuradores da República afirma que a demonstração do dolo só ocorrerá por meio de um “esforço hercúleo ou desproporcional” do Ministério Público.
Há outras salvaguardas criadas para o administrador, como uma que afirma que a assessoria jurídica que avaliou a legalidade de um ato administrativo ficará obrigada a defendê-lo na Justiça, caso seja apresentada ação de improbidade.
O trecho da lei que lista práticas impróprias trouxe definições mais específicas. Anteriormente, ele dizia que configurava irregularidade “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”, parte agora revogada.
O item “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” também foi eliminado.
Para os críticos da novidade, a nova formulação pode impedir punições com base nessa lei para irregularidades como tortura policial, assédio sexual ou rachadinha de salários de servidores no Legislativo.
A versão sancionada traz mais detalhes a irregularidades previstas, o que pode tornar as punições mais restritas. O item “negar publicidade aos atos oficiais” agora vem com o acréscimo “exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei”.
A Confederação Nacional dos Municípios defende que a eliminação da possibilidade de punição por ofensa a princípios evita “interpretações muito genéricas” na Justiça, o que ampliava a possibilidade de punição ao bom gestor.
Outra novidade do projeto aprovado é a restrição à perda de função pública. Pela nova regra, o afastamento só atinge o cargo que motivou a ação. Se um prefeito for condenado por fato ocorrido na época em que era secretário, por exemplo, ele não perde mais o posto.
A nomeação de parentes para cargos públicos já vinha sendo considerada improbidade administrativa com base na jurisprudência construída pelos tribunais. Agora, a proibição desse tipo de prática foi incluída expressamente na legislação.
Porém um trecho do texto despertou dúvidas sobre seus efeitos na prática. Ele diz: “Não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita”.
O promotor de Justiça no Rio de Janeiro Emerson Garcia, que pesquisa o tema da improbidade, diz que o dispositivo é mal redigido e deixa brechas.
“Pode atrair uma interpretação e exigir que o autor da ação [a Promotoria] demonstre que o objetivo daquela nomeação foi praticar um ato ilícito. Como demonstrar isso? É muito difícil.”
Um dos pontos mais polêmicos da nova legislação trata dos prazos para prescrição das ações. A lei traz prazos que podem ser muito curtos para a definição das ações, tendo em vista a quantidade de recursos possíveis ao alcance das defesas.
Antes, as ações prescreviam até cinco anos após o término do mandato ou do exercício da função pública. Agora, a prescrição ocorre oito anos após a ocorrência do fato ou, em caso de infração permanente, do dia em que a situação cessou.
Porém o prazo cai para quatro anos a partir do momento em que a ação foi ajuizada ou em que foi publicada a sentença ou acórdão de segunda instância.
Como exemplo, no caso do deputado Arthur Lira, a condenação por improbidade em primeira instância ocorreu em 2012 e a confirmação pelo Tribunal de Justiça, em 2016.
Passados cinco anos, ainda não houve decisão final nas instâncias superiores. Esse processo trata de irregularidades na Assembleia Legislativa de Alagoas na época em ele era deputado estadual.
O deputado Zarattini disse na Câmara que a medida era necessária para evitar que as ações se perpetuassem “de forma indefinida no tempo”, de acordo com o princípio da duração razoável do processo estabelecido na Constituição.
A nova norma dá um prazo de um ano, prorrogável pelo mesmo período por mais uma vez, para o inquérito civil para apuração de ato de improbidade. Encerrado o prazo, a ação precisa ser proposta em até 30 dias. Anteriormente, não havia essa regra.
A nova legislação traz uma série de dispositivos que na prática beneficiam empresas contratadas pelo poder público.
Em entrevista à Folha, o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Herman Benjamin afirmou que a nova legislação provoca uma “blindagem extremamente inteligente” a construtoras e concessionárias de serviços públicos.
A lei afirma, por exemplo, que caso haja fusão ou incorporação, a empresa sucessora só terá a obrigação de reparar danos até o limite do patrimônio transferido, não sendo aplicáveis as demais sanções decorrentes de fatos ocorridos antes da mudança societária.
Outro trecho afirma: “Na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades”.
Em caso de fraude em licitação, será preciso provar que houve “perda patrimonial efetiva” decorrente da irregularidade, o que não existia antes.
Anteriormente, o Ministério Público e outros órgãos, como a AGU (Advocacia-Geral da União) e as procuradorias municipais, podiam ajuizar ações de improbidade na Justiça.
Na Lava Jato, a Petrobras, vítima de esquema de corrupção envolvendo partidos e empreiteiras, também foi à Justiça buscar ressarcimento com base nessa lei.
A partir de agora, apenas o Ministério Público terá a prerrogativa de ajuizar ações. A mudança foi motivada por alegações de perseguição política contra ex-gestores nos municípios.
Os críticos do projeto consideram negativo principalmente impedir a União, por meio da AGU, de buscar reparação em casos de improbidade.
Os autores da lei argumentam que, como as punições envolvem a perda de direitos fundamentais dos acusados, como os direitos políticos, é necessário restringir a legitimidade ao Ministério Público.
O texto da nova lei dá o prazo de um ano para que procuradores e promotores manifestem se têm interesse no prosseguimento das ações ajuizadas anteriormente pela Fazenda Pública.
A legislação sancionada cria mais amarras para a decretação de indisponibilidade de bens de acusados, outra das alegadas causas do “apagão de canetas” citado por políticos.
Com o novo texto, os bens só poderão ser bloqueados para garantir o ressarcimento aos cofres públicos de determinada medida ilegal se ficar demonstrado o “perigo de dano irreparável” ou de risco ao resultado do processo.
Também há trecho que estabelece que as contas bancárias dos alvos só serão bloqueadas caso não se encontrem bens móveis e imóveis em geral.
Quando for condenado a ressarcimento, o juiz poderá autorizar o réu a parcelar a devolução em até 48 vezes.
Os efeitos da nova lei sob casos em andamento ainda não estão bem dimensionados. Como as alterações em muitos casos afrouxam as normas, réus irão pleitear benefícios do novo texto, ainda que já tenham sido condenados e estejam recorrendo.
Há temor de uma enxurrada de pedidos no Judiciário referentes aos casos já abertos.
“Teremos uma lei simbólica. O desmando vai crescer de tal maneira que a própria atuação do Ministério Público possivelmente vai ser apontada como causa da ineficiência do Estado no combate à corrupção. O Ministério Público muito dificilmente conseguirá tornar essa lei efetiva”, diz Emerson Garcia.
Outra repercussão será sobre ações abertas contra partidos políticos, como as que tramitam em Curitiba em desdobramento da Lava Jato. A nova lei barra processos contra as legendas por improbidade.
As mudanças também vão exigir uma nova consolidação de entendimento dos tribunais a respeito de pontos dessa legislação.
A jurisprudência da versão anterior do texto, de 1992, foi gradualmente sendo construída a partir de decisões do STJ. Todo esse trabalho agora será revisto.
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