Veja cria “taxa de verdade” para tom da pele de Marighella
Foto: Mario Magalhães/Divulgação/VEJA
A arrogância da Veja na resenha do filme Marghella, censurado no Brasil há pelo menos dois anos para não ferir a sensibilidade do regime, só não é maior que a falta de noção da revista. Ela se arrogou o direito de conferir “taxas de verdade” a tópicos do filme. A cor da pele do Marighella real e do ator que o interpreta, Seu Jorge, foi de “70%”, diz Veja.
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Em 4 de novembro de 1969, Carlos Marighella — então considerado “o inimigo número um do Brasil” pelo regime militar, foi morto em São Paulo. Agora, 52 anos depois, na mesma data da morte, o longa Marighella, de Wagner Moura, estreou nos cinemas depois de um longo imbróglio com a Ancine e acusações de censura. Fundador da Ação Libertadora Nacional, principal representante da luta arma contra a ditadura, Marighella entrou para a história sempre assumindo polos opostos: enquanto é idolatrado por uns como herói, é condenado no mesmo nível por outros, acusado de terrorismo. Para iluminar o longa, VEJA debruçou-se sobre biografias e documentos históricos que discorrem sobre acontecimentos do filme, das fitas gravadas ao filho que nunca existiram até a expulsão do Partido Comunista, que era contrário à luta armada de seu ex-membro. Confira:
O atentado contra Marighella dentro de um cinema aconteceu de forma similar ao retratado no filme, mas com algumas liberdades poéticas no contexto. No livro Por Que Resisti à Prisão, ele conta que havia marcado um encontro com a zeladora de seu prédio para pegar algumas roupas, já que havia fugido do local dias antes, durante uma invasão da polícia. Vendo que ela estava sendo seguida, entrou no cinema para confundir os policiais, “visando receber no interior do salão, às escuras, o embrulho que ela trazia”. Lá dentro, recebeu o pacote, mas o local foi invadido pelas forças de segurança, que o balearam no peito depois de gritos de “abaixo à ditadura”. Segundo as publicações da época, ele de fato lutou, desarmado, por minutos a fio com os policiais. Rendido, foi levado para a rua, onde um jornalista do Correio da Manhã registrou a prisão, como mostra o filme. Não há indícios, porém, que o filho Carlinhos estivesse assistindo a tudo do carro, nem eram da criança as roupas que levava a zeladora, que no filme é mandada fugir do local sem entrar no cinema. Outra diferença é que, no relato de Marighella, os policiais interromperam a seção e acenderam as luzes assim que entraram no cinema, enquanto o filme mostra os agentes com lanternas abordando o homem com o filme rodando de fundo.
Logo no começo do filme, Marighella, em maio de 1964, nada com o filho Carlinhos, que aparenta ter entre 10 e 12 anos. Com o recente golpe militar, ele diz ao menino que ele precisará ir pra Bahia morar com a mãe por questão de segurança, mas promete que voltará a vê-lo antes que complete 15 anos. Carlinhos realmente costumava nadar com o pai, e voltou a morar com a mãe em Salvador, mas a promessa nunca aconteceu — na verdade, em 1964, ele já era um rapaz de 16 anos, e não uma criança pequena, como mostra o longa. O filme ainda usou outra liberdade poética com o menino: as fitas que Marighella grava para o filho, na esperança de que elas cheguem até o garoto um dia, nunca existiram. O recurso serviu para apresentar ao espectador a vida e os valores do biografado.
Uma das primeiras polêmicas que despontaram com o filme diz respeito ao tom de pele do guerrilheiro, mais claro do que o de Seu Jorge, negro retinto. Nas redes sociais, os críticos do longa acusaram a produção de retratar um branco como sendo preto, mas a realidade é mais complexa do que isso. Neto de escravos sudaneses, Marighella é fruto do relacionamento da baiana Maria Rita do Nascimento, negra e filha de escravos, com o imigrante italiano Augusto Marighella, um homem branco. A miscigenação deu a ele um tom de pele mais claro — próximo ao de Mano Brown, primeira escolha de Wagner Moura para o papel — e ele costumava se descrever como um “mulato baiano”, termo hoje considerado pejorativo. Nas redes sociais, o biógrafo Mario Magalhães respondeu à polêmica dizendo que os inimigos de Marighella sabiam que ele não era branco. “Em 1947, o deputado Marighella criticou um colega que levara um carro (a “Baronesa”) da Câmara para a Bahia. Altamirando Requião reagiu: ‘Não permito que elementos de cor, como V. Ex.se intrometam no meu discurso”, escreveu Magalhães no Twitter, citando um episódio de racismo enfrentado por Mariguella.
Em determinada cena da produção, Marighella aparece falando com Jorge Salles, um jornalista membro do PCB que o alerta sobre a posição contrária do partido à luta armada e que ele acabaria expulso. A passagem é verídica: em uma edição de janeiro de 1968 do jornal Voz Operária, o PCB discorre sobre as resoluções de seu 6º congresso, feito em dezembro do ano anterior, e ratifica a expulsão de Carlos Marighella e de uma série de outros membros que “participaram de atividades fraccionistas”. Maior organização de esquerda da época, o PCB defendia uma “transição pacífica” para o socialismo e a resistência à ditadura por meios constitucionais, como o voto no MDB e a participação de seus membros em sindicatos. Parte dos militantes, porém, descontentes com a “covardia” e “apatia” — como descreve Marighella no filme — perante o golpe de 64 e a repressão militar, deixaram o partido e se juntaram a núcleos de guerrilha como a Ação Libertadora Nacional, fundada por Marighella depois de sua expulsão.
De fato, em 1969, a ALN usou as torres de rádio para burlar a censura e invadir o sinal da Rádio Nacional, como mostra o longa, mas não foi Marighella quem leu o texto. Embora o manifesto “Ao Povo Brasileiro” tenha sido escrito por ele em junho, meses antes do ocorrido, foi o estudante Gilberto Luciano Belloque quem emprestou a voz para a gravação transmitida via rádio em agosto. Ao contrário do que mostra o filme, a transmissão foi feita pela manhã, e não no período da noite. O jornalista Hermínio Sacchetta publicou o texto na íntegra na edição da manhã do Diário da Noite e, como mostra o longa, acabou preso pelos militares.
Quando Marighella foi morto, em 4 de novembro de 1969, ele era considerado pelos militares como “o inimigo número 1 do Brasil”. Naquele dia, como mostra o filme, dois padres que ajudavam a ALN marcaram — torturados e sob a mira do revólver — um encontro com Marighella que resultaria em sua morte. Segundo a narrativa oficial, descrita pela Operação bandeirantes (Oban), o guerrilheiro chegou ao local e recebeu voz de prisão, mas correu para o carro e “fez menção de sacar, de dentro de uma pasta, duas armas que estavam nela”. Ele, então, foi alvejado por metralhadoras e “caiu dentro do carro”, na posição e local onde foi fotografado horas depois. Uma perícia feita posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade, porém, indica que Marighella foi alvejado já dentro do veículo, sem troca de tiros — versão reproduzida pelo longa — e morreu com um tiro à queima roupa. “O tiro que atingiu Marighella na região torácica, provavelmente o último, foi efetuado a curtíssima distância (menos de oito centímetros), através do vão formado pela abertura da porta direita do veículo, numa ação típica de execução”, conclui o documento. No longa, a distância é um pouco maior, e Marighella é acertado por mais de cinco tiros, número constatado pela perícia.
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