Bolsonaro planeja transformar briga com STF em pauta eleitoral
Foto: Reprodução/ Veja
O cientista político e professor Fernando Abrucio relaciona a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na indicação de André Mendonça para ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) com o tema central da campanha do presidente à reeleição em 2022.
“O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro”, afirma à Folha o acadêmico, que vê o uso político-eleitoral da corte como sinal de enfraquecimento da democracia.
Para Abrucio, o mandatário vai explorar a promessa de colocar no STF mais ministros cristãos e conservadores, no intuito de acenar ao eleitorado evangélico e reforçar o que chama de cruzada contra valores progressistas associados à esquerda.
O docente da FGV em São Paulo considera um segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o cenário mais provável, à luz do quadro atual e das pesquisas mais recentes. “O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro turno”, diz.
Abrucio afirma que, se Bolsonaro vencer, será por uma margem apertada, o que o deixará enfraquecido já no início do eventual segundo mandato. Segundo o professor, isso abriria margem para o debate sobre o semipresidencialismo, sistema defendido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
O que os bastidores da indicação de Mendonça antecipam sobre a campanha de Bolsonaro à reeleição? O STF será parte da chamada guerra cultural, com a defesa de valores e a discussão moral, que será uma das estratégias políticas do Bolsonaro. Um segundo vértice é o discurso de destruição do inimigo, e nisso a campanha vai ser muito pesada, atingindo várias frentes: comunismo, “extrema imprensa”, retorno da esquerda. E outro eixo serão as políticas públicas, mas o resultado nessa área é muito pequeno, com a crise econômica e social e as ações desastrosas de saúde e educação.
O STF então vira uma das trincheiras da campanha? Sim. Não é mais só dizer: “Vamos fechar o Supremo”, “o Supremo não deixa governar”. Isso fracassou, felizmente para o país. A estratégia agora é a ideia de colocar “os nossos” lá, os que defendam “os nossos valores”.
É um importante argumento eleitoral, possui algum grau de eficácia. Nos Estados Unidos, os republicanos vêm, até mesmo antes da eleição de Donald Trump, fazendo isso de usar a Suprema Corte [hoje com maioria conservadora entre os juízes].
Podemos nos preparar para uma eleição presidencial com o STF no foco? Sim, mas não o STF no sentido de Poder, algo institucional. Para Bolsonaro, o STF será uma espécie de símbolo. Tudo aquilo que ele puder usar para prometer avanço nessa agenda de valores em prol da pátria e da família, ele vai usar. O argumento dele se baseia na justificativa de que o Brasil é um país eminentemente cristão.
Bolsonaro confirmou essa estratégia ao dizer há alguns dias que, se for reeleito, indicará mais dois ministros evangélicos? Isso será constante agora e na campanha. Mas eu diria que essa fala é mais uma promessa do que uma possibilidade.
Por quê? Acho muito difícil que Bolsonaro consiga colocar no Supremo algum conservador muito radical. Não passa no Senado, em hipótese nenhuma. E acho que o Senado na próxima legislatura não vai estar muito diferente do que é hoje, ou seja, ele não terá maioria.
É preciso pontuar que Mendonça pertence a uma denominação moderada [Igreja Presbiteriana], e foi esse o perfil da atuação dele nos últimos anos em Brasília, talvez à exceção do período em que ele foi ministro da Justiça.
Mas, pensando na campanha, apelar para as questões religiosas e de comportamento funcionará para vencer? Ao pregar esse avanço sobre o STF, o argumento é o de que [os conservadores] precisam ter o domínio do controle das instituições. Esse jogo é até mais inteligente politicamente do que ter a Sara Winter pregando fechamento do Supremo. Vamos lembrar que o pessoal que propôs invadir o STF foi todo rifado pelo Bolsonaro.
É uma reciclagem da retórica que vigorou até o 7 de Setembro? É uma mudança, na verdade. Até o 7 de Setembro, era para dar o golpe. E o golpe fracassou. Não acho que o bolsonarismo raiz tenha desistido por completo do golpe. Eles guardaram na gaveta e podem ressuscitar algum dia.
A questão do Supremo hoje é uma estratégia eleitoral, e algo até mais racional do que a proposta de golpe. O objetivo é dizer que o presidente fará uma série de ações para fortalecer a maioria cristã do país.
Em que medida é legítimo levar ao Supremo representantes de segmentos? Não é um argumento ilegítimo, mas precisa estar associado a outra dimensão. O que se espera de um ministro do STF é que, independentemente de ser judeu, cristão ou ateu, ele seja um bom ministro. O aspecto religioso é irrelevante.
Algumas críticas feitas a André Mendonça foram equivocadas. O que deveria impedi-lo é a gestão dele como ministro da Justiça, que foi desastrosa para a democracia, com autoritarismo e perseguições. Isso constitui falta de reputação ilibada, nos quesitos de comportamento ético e de respeito à democracia. Mas ele não tem menos qualificações técnicas do que outros ministros, como Dias Toffoli.
O STF também aparece na pré-campanha de Sergio Moro, mas pela via do combate à corrupção, com as críticas do ex-juiz a decisões da corte. A pauta da corrupção, aparentemente, não será relevante nesta eleição. Moro pode até crescer com esse discurso e chegar a uns 15%, mas esse pode ser o teto dele também.
As pessoas vão olhar e dizer: mas ele foi ministro do Bolsonaro, e ficou muito tempo [no governo]! Aliás, essa ligação entre eles será explorada ao máximo pelo Bolsonaro, que já o ridicularizou, por exemplo, por ficar calado nas reuniões de ministérios.
O que essa questão do STF como trincheira político-eleitoral revela sobre o sistema partidário e político brasileiro? Isso mostra um enfraquecimento da democracia brasileira. É um uso equivocado do sentido das instituições, e não é só com o STF.
Como o sr. avalia a relação hoje de Bolsonaro com os evangélicos? É bem provável que ele tenha menos voto dos evangélicos em 2022 do que teve em 2018, porque a crise econômica e social está brava, e o evangélico mediano é pobre e negro. Grande parte dessa fatia não vai votar no Bolsonaro.
No entanto, a situação dele para ir ao segundo turno é mais tranquila do que muitos imaginam. É preciso dizer que, caso ele ganhe a eleição, será por uma margem estreita. O grande medo do Bolsonaro hoje é o Lula ganhar no primeiro turno.
A pauta moral será suficiente para Bolsonaro se manter competitivo? Ele vai fazer uma campanha, digamos, pró-cristãos. É um dos poucos argumentos do Bolsonaro que sobraram. Com essa linha, ele consegue manter uma quantidade de cristãos que se soma aos conservadores e armamentistas, totalizando algo em torno de 15%. Esse bolsonarismo raiz é o que ainda segura o presidente.
Se ele tiver mais 10%, distribuindo dinheiro, pagando Auxílio Brasil, com a capilaridade do centrão, ele está no segundo turno, que é o que ele quer. E aí no segundo turno é tudo ou nada, naquela cantilena já conhecida: “Lula é comunista”, “o país vai ser dominado pelos chineses” etc.
A guerra cultural será a tônica da campanha de Bolsonaro? É plataforma de campanha e de governo. Afinal, o que tem para mostrar? O Posto Ipiranga [ministro da Economia, Paulo Guedes], o que entregou? Na educação, o que se tem é a agenda evangélica, a batalha contra a tal ideologia de gênero. E na saúde? É liberdade para você morrer? Se fizer um balanço das políticas públicas, não tem nada, é zero. Ele não construiu, só destruiu.
O país está economicamente muito mal, e não acredito que vá melhorar tão cedo. Vai piorar, na verdade. Para quem está na pobreza e buscando formas de comer e sobreviver, os valores cristãos não vão adiantar [na hora de decidir voto].
Vê chances de Bolsonaro estar no segundo turno? Ele precisa de 25% para estar no segundo turno. E ir para o segundo turno contra Lula significará pintar o petista como a ameaça maior ao país. É algo como “Deus contra o Diabo”. É muito difícil que Lula, ainda que derrotado, tenha no segundo turno menos de 45% dos votos. Bolsonaro começaria o governo muito enfraquecido.
Ele fica refém do Congresso e, na primeira crise, instala-se o debate sobre o semipresidencialismo. Essa é a ideia do Arthur Lira, que é hoje o homem mais importante da República. Lira sabe que um presidente fraco é bom para o Congresso.
O nível do debate em 2022 será assustador e violento. Vai ser uma campanha suja, no estilo das eleições mexicanas na época do PRI [Partido Revolucionário Institucional], com atentados, assassinatos de candidatos e clima de terror.
Existe alguma forma de evitar isso? Bolsonaro fará uma cruzada pela vitória. Isso é o que deveria dar mais juízo a Lula e à terceira via, no sentido de buscar uma frente ampla, a mais diversa possível, já que o que há do outro lado é alguém que pode, ganhando ou perdendo, dilacerar o país.
Quem assumir em 2023 pegará uma terra arrasada. É sobre isso que o país deveria pensar. As pessoas não estão percebendo o grau de desestruturação do tecido social nos últimos anos. É um declive muito acentuado, desde 2013, o impeachment [de Dilma] e a Lava Jato, acentuado superlativamente sob Bolsonaro. Para consertar, o Brasil vai precisar de mais gente unida do que desunida.
Vê chance de união na chamada terceira via, que ostenta o discurso da convergência? Acho difícil que essa unificação se dê em torno do Moro. Tanto Moro quanto [João] Doria são filhos da crise de 2013, que produziu a polarização entre Lula e Bolsonaro e acabou engolindo todo o resto.
RAIO-X
Fernando Luiz Abrucio, 52
Doutor em ciência política pela USP, é professor e pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp) e foi pesquisador visitante no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). É autor dos livros “Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira” (1998) e, em parceria com B. Guy Peters e Eduardo Grin, “American Federal Systems and Covid-19” (2021)
Assinatura
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