A partir de 1985, Brasil interrompeu golpismo escancarado

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Foto: Nelson Almeida/AFP

O Brasil já experimentou diferentes tipos de eleição presidencial. Eleição indireta, como a realizada em 1985 para escolher o primeiro mandatário civil depois do fim da ditadura militar. Eleições de cartas marcadas e definidas por acordos entre as elites, que predominaram na chamada República Velha (1889-1930), período em que as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais se alternavam no poder. E eleições diretas com voto universal — em 2022, será a nona seguida desse tipo. Desde as primeiras votações, as campanhas trazem ingredientes que perduram até hoje: traições entre aliados, disseminação de informações falsas, dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral e ameaças de não reconhecimento do resultado das urnas. Apesar disso, cada corrida presidencial tem uma característica única, peculiar, que a define. Em 2018, foi o antipetismo, impulsionado pela combinação de recessão econômica com os desdobramentos do maior escândalo de corrupção da história do país, o petrolão.

Ainda é cedo para dizer o que prevalecerá em 2022, mas há pistas no horizonte. A economia deve ser decisiva para o resultado final, e a polarização acentuada prenuncia uma disputa à base de agressões e ódio, num sinal de que — apesar de seus 200 anos como nação independente — o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer em seu processo civilizatório. Em 2022, serão completados apenas 37 anos da chamada Nova República — e também de estabilidade democrática. É pouco tempo se comparado com outras nações desenvolvidas, como os Estados Unidos, mas uma marca importante se for levado em consideração o fato de que, entre a ditadura do Estado Novo (1937 a 1946) e a ditadura militar (1964 a 1985), houve só um breve hiato democrático, com a eleição direta de quatro presidentes. “A democracia brasileira resistiu, desde 1985, a diversos processos de impeachment presidencial e escândalos de corrupção. Em nenhum momento, nestes trinta e tantos anos, houve uma séria ameaça de intervenção militar ou outro tipo de golpe de Estado. Esse é um sinal muito bom. As eleições sempre se mantiveram, com ordem, sem violência”, diz o cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getulio Vargas.

Ele lembra que, mesmo no pior momento de tensão entre Jair Bolsonaro (PL) e os chefes dos outros poderes, a democracia se manteve firme. “As instituições estão sob tensão e estão sendo testadas, mas não estão em colapso”, ressalta Praça. São conhecidas as diversas provas de fogo superadas no atual período de amadurecimento democrático brasileiro. O primeiro presidente eleito de forma direta após a ditadura, o hoje senador Fernando Collor de Mello (PROS), caiu na esteira de um processo de impeachment. A primeira presidente eleita, Dilma Rousseff (PT), também. Apesar da turbulência política nesses dois episódios, não houve tanques nas ruas, suspensão de eleições ou convulsão social. Ambas as quedas foram debitadas naquilo que a sabedoria popular define como dores do crescimento. Entre as duas destituições, o Congresso aprovou em 1997 a emenda da reeleição, que permite ao presidente, governadores e prefeitos disputarem um segundo mandato consecutivo. O projeto foi idealizado para favorecer o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que despachou no Palácio do Planalto entre 1995 e 2002.

Embalados pelo sucesso do Plano Real, os tucanos queriam governar o país por vinte anos, mas FHC não conseguiu fazer o sucessor, e Lula (PT) assumiu o poder em 2003. Foi uma transição pacífica, apesar de PSDB e PT terem disputado cabeça a cabeça a política nacional durante mais de duas décadas. Nos últimos tempos, a polarização aumentou e chegou ao paroxismo, considerando-se os padrões brasileiros deste século. A diferença é que agora o enfrentamento se dá entre Lula e Bolsonaro. De acordo com as pesquisas, o petista — que disputou cinco e venceu duas eleições presidenciais — e Bolsonaro, que tenta a reeleição, são os favoritos para chegar ao segundo turno. Os dois têm ampla vantagem sobre os demais concorrentes, que tentam colocar de pé uma candidatura competitiva da chamada terceira via. Em tese, há espaço para que isso ocorra, já que uma fatia considerável dos eleitores não quer a vitória nem de Lula nem de Bolsonaro. Na prática, nenhum dos nomes testados pelo centro conseguiu deslanchar até agora. Essa é uma das principais dúvidas até a votação em outubro: alguém conseguirá romper a polarização? Políticos e especialistas dizem que, entre os dois favoritos, quem corre o risco de ficar de fora do segundo turno é Bolsonaro.

Por ideias estapafúrdias, como a rejeição à vacina e o ataque às instituições, que tanto atrapalham a cena política e econômica, o presidente da República é recordista de rejeição, que está na casa de 60%. O porcentual parece “proibitivo”, capaz de inviabilizar a conquista de um novo mandato, mas não é, já que alguns de seus possíveis adversários, como o ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro (Podemos), lidam com números parecidos. A rejeição a Lula é bem menor e está na casa dos 40%, mas o petista tem sido poupado até aqui. A tendência é que a artilharia se volte contra ele com a aproximação da votação, o que pode impulsionar a sua rejeição. Os adversários de Lula revisitarão as duas condenações sofridas pelo ex-presidente no âmbito da Lava-Jato, que lhe renderam 580 dias de cadeia e depois foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Eles também explorarão a rejeição ao PT, que é bem maior do que a do líder petista. “Para um país historicamente bem-humorado, pode ser que isso se modifique, mas tudo caminha para uma eleição de ódio em 2022. Mais do que votar em quem ele quer na Presidência, o eleitor pensa hoje em quem ele não quer na Presidência”, diz Paulo Guimarães, professor de estatística da Unicamp e consultor de campanhas políticas.

Uma das fragilidades de Lula está no campo das denúncias de corrupção. Esse tema ainda está no topo das prioridades de cerca de 10% do eleitorado, mas não deve ter na próxima campanha o mesmo peso que teve em 2018. Até meados do ano passado, as pesquisas mostravam que a primazia do eleitorado era o combate à pandemia de Covid-19, mas com o avanço da vacinação e a persistência da crise econômica, em especial o aumento da inflação e da pobreza, a economia assumiu a dianteira entre as preocupações da população. O eleitor quer emprego, comida no prato e gasolina mais barata. Lula está certo de que se beneficiará disso, porque seu governo, como gosta de repetir, promoveu um ciclo de crescimento com inclusão social. A expansão do PIB em 2010, seu último ano de mandato, foi de 7,5%. Bolsonaro não tem um número tão robusto para mostrar, mas não fugirá do debate. O presidente lembrará de um dado relevante omitido por Lula: a recessão a que a petista Dilma Rousseff submeteu o país. Bolsonaro também aposta na implantação do Auxílio Brasil, programa de transferência de renda com o qual pretende melhorar a sua popularidade principalmente entre quem ganha de dois a cinco salários mínimos, grupo que forma metade do eleitorado.

Afiançando-se no discurso do ministro Paulo Guedes, o governo espera uma melhora substancial do ambiente econômico em 2022. O problema é que a projeção otimista não é compartilhada por agentes de mercado (veja a reportagem na pág. 32). Hoje, a inflação dos alimentos, o preço dos combustíveis e a tarifa de energia, além do desemprego, são ameaças reais à reeleição de Bolsonaro. Se ele não ganhar, será o primeiro mandatário da história brasileira que disputa e não obtém um segundo mandato. “O desafio continua sendo conquistar os mais pobres. Isso só acontecerá se o governo convencer mais gente de que a economia melhorará”, diz o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Consultoria. Com a rendição ao Centrão, Bolsonaro deixou de lado nos últimos meses a retórica golpista e as ameaças institucionais — e até reduziu um pouco a discurseira de cercadinho feita para agradar a apoiadores mais radicais. Neste momento, ele adota uma postura mais contida, por sugestão dos políticos profissionais que assumiram o controle do país. Por enquanto, o presidente parece concordar com a estratégia de aparente moderação, mas, caso sinta a sua vaga no segundo turno ameaçada, é barbada que recorrerá ao radicalismo e à sua guerrilha digital para atacar e desconstruir rivais — com verdades ou mentiras, tanto faz.

A dez meses da eleição, há certo consenso de que a disputa deve ser duríssima e capaz de acirrar o clima de beligerância reinante no país, que, entre outras coisas, impede o diálogo e atrapalha a formação de consensos mínimos que permitam o enfrentamento de problemas históricos. Atrás nas pesquisas, os demais presidenciáveis ainda procuram um discurso capaz de convencer eleitores de que não existem apenas as opções Lula e Bolsonaro e que a rivalidade entre os dois só beneficia a própria dupla. “São dois populistas. Em um país sem uma liderança consciente, respeitável, os populistas se ressaltam”, disse o governador de São Paulo e concorrente do PSDB, João Doria, em entrevista recente a VEJA. “Vivemos hoje um clima de radicalismo, de extremismo, de uma cultura de ódio que está acabando com o Brasil e que precisamos conter”, afirmou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em evento para divulgar sua pré-candidatura ao Planalto. Os candidatos de centro têm falado muito de pacificação, união nacional e coisas do tipo. Tudo isso é importante, mas não basta. O eleitor quer saber como o governo atuará para atenuar as agruras do cotidiano. Enquanto as propostas não aparecem, prevalecem o ódio e as agressões.

O jogo sujo, aliás, faz parte da história das eleições presidenciais brasileiras. Na campanha de 1945, uma fala do brigadeiro Eduardo Gomes foi distorcida de forma a dar a entender que ele menosprezava os trabalhadores humildes (“marmiteiros”), o que contribuiu para a sua derrota na disputa com o general Eurico Gaspar Dutra. Em 1989, Fernando Collor de Mello, às vésperas do segundo turno, levou à TV uma ex-namorada de Lula para dizer que o petista a pressionou a fazer um aborto. Em 2014, a propaganda de Dilma Rousseff insinuou que Marina Silva, que chegou a liderar as pesquisas de intenção de voto, empurraria a população mais carente para a fome. Num país refém da polarização, lances parecidos com esses não surpreenderão. É uma pena, mas em 2022 não haverá “paz e amor” nem no slogan dos presidenciáveis. O importante é que, goste-se ou não do resultado, os brasileiros respeitem as instituições e fortaleçam ainda mais a jovem democracia brasileira.

Colaborou Rafael Moraes Moura

Veja

 

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