Brasil é elogiado por ignorar negacionismo de Bolsonaro

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Veja: Leo Aversa

A história de como o corpo humano é infectado por micróbios e as doenças aparecem já estava nas brincadeiras de criança da pesquisadora, médica infectologista e pediatra Sue Ann Costa Clemens. Não é de espantar, portanto, que hoje ela esteja entre os grandes cientistas que ajudam o mundo a combater o coronavírus que causa a Covid-19. Entre outras atribuições, Sue é professora da Universidade de Oxford, a centenária instituição inglesa reconhecida como uma das melhores do planeta, e foi a responsável pela coordenação dos estudos clínicos com a vacina Oxford-AstraZeneca feitos no Brasil. O êxito foi tão grande que a universidade decidiu abrir no país sua primeira unidade fora do Reino Unido, com atuação inicialmente focada na área de vacinas. Acompanhou de perto a transferência de tecnologia da produção do imunizante para a Fundação Oswaldo Cruz, algo que fará o país subir alguns degraus na expertise de fabricação de vacinas. Nesta entrevista a VEJA, a cientista conta como é fazer ciência correndo contra o tempo, contra o negacionismo, e o que vamos aprender com a pandemia.

A senhora coordenou no Brasil o braço da pesquisa clínica da vacina Oxford-AstraZeneca com o maior número de participantes do mundo. Como foi a mobilização para que tudo desse certo? No dia 28 de abril de 2020, o professor Andrew Pollard, chefe do Oxford Vaccine Group, me procurou para falarmos sobre a expansão da pesquisa que ele fazia com uma vacina contra a Covid-19. Eu estava no Brasil e por aqui os casos explodiam. Uma semana depois, tivemos nossa primeira reunião. Andrew estava à frente do estudo mais adiantado de um imunizante contra a doença. Ele havia sido aplicado em 1 000 participantes no Reino Unido, mas era preciso ter um volume maior de participantes. Andrew tinha pensado em registrar 1 000 voluntários brasileiros. Enquanto ele falava, a única coisa que eu pensava era: “Quando você quer que eu comece?”.

E quando começou? Assim que terminamos a reunião. Nunca pensei que testemunharia uma epidemia se tornar uma pandemia e estava vendo a doença devastar as pessoas. Sabia que, se corrêssemos, salvaríamos mais vidas. O Brasil sempre teve ótimos centros de realização de estudos clínicos e isso ajudou. Seis serviços foram escolhidos nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Natal, Porto Alegre e Santa Maria. No começo, eram 1 000 voluntários. Depois, foi passando para 2 000, 3 000, até que em quatro meses chegamos a quase 11 000 voluntários.

A senhora havia participado de algo parecido? Não. Foi um trabalho colossal. Os profissionais se dedicaram dia e noite. Era preciso ligar para mais de 10 000 voluntários uma vez por semana, seguir os indivíduos sintomáticos e analisar o que poderia ser considerado eficácia em uma doença desconhecida naquele momento. Tínhamos reunião à meia-noite para saber se algum voluntário teve reação. Ao mesmo tempo, eu precisava monitorar toda a qualidade, fazer a limpeza de dados. Agora, temos um imunizante inspecionado por cinco agências regulatórias de peso e quase 3 bilhões de pessoas vacinadas. Foi bastante emocionante ver nosso trabalho aqui no Brasil se concretizando quando a vacina foi aprovada.

A experiência foi decisiva para a Universidade de Oxford abrir no Brasil sua primeira unidade fora da Inglaterra? Sim. É um reconhecimento da instituição ao talento científico do profissional brasileiro. Houve profissionalismo, qualidade científica e garra para entregar resultados.

Como vai funcionar? Os alunos aprenderão todo o processo de desenvolvimento de vacinas, desde a descoberta até o registro do produto. Começaremos com cursos de atualização e outros mais básicos. Mestrado e doutorado serão oferecidos a menos pessoas, voltados a profissionais que são pesquisadores.

Serão acessíveis? Os cursos de atualização terão pagamento simbólico. No mestrado e doutorado, teremos taxa de inscrição, mas vamos procurar instituições que queiram financiar bolsas.

A senhora participa de uma epopeia científica sem precedente. A essa altura, como é deparar com o negacionismo que ainda persiste? Há negacionismo, é verdade. Mas a população brasileira deu um show. Começamos a vacinação de forma lenta, porém hoje somos um país com uma das maiores taxas de população totalmente vacinada. Apresentar 70% da população protegida é algo que temos de aplaudir. É preciso bater palmas para o SUS porque não adianta ter vacina e não a fazer chegar à população. Além disso, os brasileiros participaram de importantes ensaios clínicos cujos dados permitiram a aprovação de vacinas.

O Ministério da Saúde é acusado de adotar medidas para atrasar a vacinação infantil contra a Covid-19 e de se posicionar a favor de terapias sem base científica. A senhora mantém uma boa relação com o ministério? Passei por mais de um ministro. Falei com Nelson Teich, participei de reuniões com Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga. Sempre fui tratada com respeito e minha relação com o ministério é da mais alta qualidade. Minha relação com eles se restringe a conversas estritamente científicas. Nada mais.

O que achou da polêmica envolvendo a imunização das crianças? Sou pediatra e totalmente a favor da vacinação das crianças. Se você me perguntar como pesquisadora, digo que precisamos ter avaliação crítica, como as agências regulatórias internacionais estão fazendo, e bem, com todos os imunizantes criados contra a doença. A vacina de RNA mensageiro (caso da vacina da Pfizer) é nova e é natural que surjam perguntas. Mas o que a população deve ter em mente é que todos os imunizantes liberados para uso são eficientes e seguros. Os riscos de quadros graves de Covid-19 são infinitamente maiores do que os apresentados por qualquer vacina. Por isso, é crucial proteger as crianças também.

Na semana passada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou o uso da CoronaVac em crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. O que acha da decisão? Toda vacina é bem-vinda. A CoronaVac é feita com uma plataforma que conhecemos (vírus inativado), sobre a qual temos experiência. Embora ela tenha um escape imunológico grande contra a ômicron, é primordial para a população brasileira, incluindo as crianças.

As crianças precisarão receber doses de reforço? Ainda não foram publicados dados sobre o assunto. Acredito que a Pfizer, pioneira no uso da tecnologia do RNA mensageiro para criação de vacinas, esteja buscando informações. Contudo, se formos fazer uma analogia com o que ocorre nos adultos, será preciso esperar de quatro a seis meses para medirmos as respostas imunológicas das pessoas nessa faixa etária.

A pandemia acaba em 2022? Ela vai passar para uma situação endêmica (o agente infeccioso continua presente, porém não provoca mais emergência sanitária). Agora, se isso acontecerá neste ano, vai depender muito do aumento e da celeridade da vacinação em grandes bolsões que permanecem sem cobertura adequada. No Malawi, 4% da população está totalmente imunizada e há outros países na África infelizmente na mesma situação. A Ásia também é um bloco com problemas semelhantes.

A que se deve essa situação? Não podemos só prover as nações com vacinas, é preciso fazer com que a distribuição tenha capilaridade. Isso seria um trabalho para instituições supranacionais, como a Organização Mundial da Saúde, que deveriam ter uma atuação mais forte nesse sentido. Ao mesmo tempo, vimos até hoje milhões de pessoas que não querem se vacinar em todo o mundo. Nos Estados Unidos, em países do Leste Europeu, como Romênia, Rússia ou Ucrânia, os índices de resistência à vacina são altíssimos.

Quais estratégias devem ser adotadas para aprendermos a conviver com a Covid-19? Vigilância, testagem e sequenciamento. Se a vacina protege menos com o tempo, o maior investimento deve ser em terapêutica, porque não há como fazer uma vacina para cada cepa que surgir. O futuro não é adaptar vacina toda hora, mas investir em prevenção e tratamentos e conseguir remédios em abundância e acessíveis para a população.

O que ficará de legado para o Brasil quando a pandemia terminar? Já podemos comemorar algumas boas heranças. Uma delas é termos criado e capacitado tantos centros de pesquisa. O desafio agora é montarmos sistemas que permitam a manutenção e a evolução desses serviços. Além disso, obtivemos a transferência de tecnologia de uma plataforma nova para a produção de vacina da Oxford para a Fundação Oswaldo Cruz. Isso tem um valor inenarrável para o Brasil. Os pesquisadores podem identificar novos patógenos e começar a testar uma vacina, além de o país se tornar autossustentável em relação aos imunizantes contra a Covid-19. Tudo isso pode resultar em pioneirismo em relação a outras vacinas.

De onde vem seu interesse por micróbios? Desde criança eu era curiosa em relação à ciência e meu brinquedo era um microscópio. E sempre adorei parasitas, bactérias, vírus. Eles me fascinavam. Lembro-me de quando fui para a Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, e não queria entrar na água por causa da esquistossomose (doença parasitária causada por verme presente em água doce contaminada). Tinha uns 8 ou 9 anos. Todo mundo nadando, se divertindo, e eu tentando imaginar o parasita e em como ele iria entrar nas pessoas.

A pandemia é uma boa vitrine para o trabalho da mulher cientista? Sem dúvida. O que fazemos mostrou a capacidade e a garra femininas na ciência. Veja o exemplo do estudo clínico da vacina Oxford-AstraZeneca no Brasil. Dos seis centros de pesquisa que participaram, quatro são chefiados por mulheres. Temos uma dedicação à pesquisa clínica muito maior do que os homens. É como ser mãe. Não termina o interesse. Também não é por acaso que muitos países que estão indo bem contra a pandemia sejam liderados por mulheres, como a Nova Zelândia, que tem Jacinda Ardern como primeira-ministra, ou a Alemanha, que até poucas semanas atrás estava sob o comando de Angela Merkel.

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