Direito ao sigilo do voto cumpre 90 anos no país
Foto: Arquivo Nacional
Assim como em outros países, o sistema eleitoral brasileiro mudou bastante ao longo do tempo. Característica hoje considerada fundamental, a previsão do voto secreto completa 90 anos neste mês.
A medida foi incluída no Código Eleitoral de 1932, em meio a um discurso de defesa da moralização das eleições, em contraposição ao contexto de fraudes generalizadas da Primeira República (1889-1930).
Apesar de adotarem o voto secreto, os políticos envolvidos na elaboração das novas regras não optaram pelos mecanismos que seriam considerados mais efetivos para garantir o sigilo do voto à época, conforme apontam pesquisadores.
Entre os mecanismos previstos nas novas regras estava a sobrecarta oficial, uma espécie de envelope onde o eleitor deveria inserir a cédula com seu voto, além do isolamento do eleitor em uma cabine protegida.
Em meados do século 19, tinha surgido na Austrália um modelo que previa, além da cabine de proteção, o fornecimento de cédulas de voto oficiais e idênticas, o que só veio a ser adotado no Brasil em 1955.
“Foi preciso mais de duas décadas para chegar até o voto australiano. Então, olhando com uma lupa historiográfica, por que a gente não foi até o melhor voto secreto ou os melhores mecanismos para o segredo do voto?”, questiona Rogerio Schlegel, professor de ciência política da Unifesp que pesquisou o debate sobre o tema naquela década.
Pelo modelo adotado a partir de 1932, depois de entrar na cabine, onde deveria inserir a cédula com seu voto na sobrecarta, o eleitor depositaria o voto na urna, sob a conferência dos mesários, que deveriam verificar se a sobrecarta era a mesma que havia sido entregue, pois esta era numerada e rubricada pelo presidente da seção eleitoral.
A regra também determinava que deveriam ser empregadas urnas suficientemente amplas, para impedir que as sobrecartas se acumulassem na ordem dos votantes, o que poderia permitir a identificação de quem votou em quem.
De acordo com Schlegel, tal opção sinaliza que as elites políticas queriam diminuir o nível de incerteza que as novas regras poderiam gerar. A avaliação é a de que, deixando a confecção das cédulas nas mãos dos candidatos e grupos políticos, a autonomia do eleitor era menor.
“A ideia era reduzir a incerteza, reformar, conservando. Porque ninguém sabia ao certo o que ia acontecer com esse novo mecanismo”, diz.
Após a derrubada do regime anterior, Getúlio Vargas assumiu o poder como chefe do Governo Provisório sob a promessa de sanear as regras eleitorais, bandeira da Aliança Liberal e da Revolução de 1930.
A inovação, com isso, promovia mudanças conforme prometido, mas ao mesmo tempo alinhada aos interesses dos grupos no poder.
Nesse sentido, Schlegel também destaca o fato de, ao longo das discussões da comissão da reforma eleitoral, o projeto ter eliminado a possibilidade de as cédulas serem manuscritas, restando a opção de serem impressas ou datilografadas.
“No dia da eleição, os velhos chefes eleitorais também propiciavam a confecção de cédulas. Você ia votar e não ia [poder] escrever o nome”, explica. “Isso dava controle [aos grupos políticos] da composição da cédula.”
DENÚNCIAS DE FRAUDES CONTINUARAM
Para além do questionamento quanto aos mecanismos adotados para buscar garantir o voto secreto, as evidências da época apontam que houve diferentes denúncias de fraudes que envolviam a tentativa de burlar o voto secreto.
Entre elas, o uso de sobrecartas que não eram opacas, o que permitiria com que os mesários vissem em quem o eleitor estava votando a partir, até mesmo, das diferenças de cada cédula, já que não havia um padrão.
Em 1933, a eleição de dois estados inteiros, Espírito Santo e Santa Catarina, chegou a ser anulada pela Justiça Eleitoral, órgão recém-criado também pelo Código de 1932.
De acordo com a jurisprudência firmada pelo TSE na ocasião, bastaria a possibilidade de violação do sigilo do voto para que as eleições fossem anuladas.
“São nulas as eleições que se fizerem com o uso de sobrecartas que não sejam opacas, por importar na violação do sigilo do voto, ainda mesmo que não fique provada fraude.”
Uma notícia do Correio da Manhã sobre o caso capixaba, contudo, colocava em questão o porquê de o tribunal ter anulado as eleições capixabas, mas não as de Pernambuco.
De acordo com trecho do parecer do ministro, conforme noticiava a reportagem, a perícia teria constatado que a sobrecarta do Espírito Santo seria menos opaca que as dos estados de Ceará, Paraíba, Sergipe e Bahia; porém comparada com a de Pernambuco seria mais opaca.
Ou seja, a sobrecarta de Pernambuco, apesar de ter sido considerada mais transparente do que a do Espírito Santo, não provocou a anulação do pleito naquele estado.
ALISTAMENTO E VOTO OBRIGATÓRIO
Outra novidade incorporada com o Código de 1932 foi o alistamento obrigatório dos eleitores, com exceção das mulheres. O voto obrigatório seria adotado pouco depois, com a Constituição de 1934, estendido às mulheres que fossem servidoras públicas.
A obrigatoriedade do voto deixou de ter distinção entre homens e mulheres em 1946 e se mantém até hoje como uma das regras eleitorais.
Conforme aponta Maria do Socorro Sousa Braga, que é coordenadora do programa de pós-graduação em ciência política da UFSCar, o significado do alistamento obrigatório ou mesmo do voto obrigatório, naquela época, é completamente distinto da situação atual.
“O principal entrave era o custo de você ir se alistar”, diz ela, elencando obstáculos que iam desde a necessidade de o cidadão tirar uma fotografia para o título eleitoral até custos envolvidos com o deslocamento do eleitor ao local do voto.
“Esse controle era muito em cima daqueles grupos que tivessem mais condições de bancar todo esse aparato necessário para o eleitor se fazer eleitor.”
Ela explica que, por isso, assim como ocorria com a confecção das cédulas, as elites e grupos políticos ainda tinham forte influência sobre quem iria ou não votar, apesar da recém-criada Justiça Eleitoral. “Esse controle do alistamento é algo que diferencia bastante de hoje.”
Paralelamente a tais entraves, as eleições do início da era Vargas foram marcadas pelo alistamento automático de grupos determinados, o que poderia favorecer o governo.
Tratava-se do alistamento ex-officio, que incluía magistrados, militares, funcionários públicos, profissionais liberais com diploma, comerciantes, entre outros.
“Os chefes das repartições públicas, civis ou militares, os diretores de escolas, os presidentes das ordens dos advogados, os chefes das repartições onde se registrem os diplomas e as firmas sociais, são obrigados, nos 15 dias imediatos à abertura do alistamento, a fornecer ao juiz eleitoral (…) listas de todos os cidadãos qualificáveis ex-officio”, estabelecia o código.
Próximo às eleições, Vargas ainda incluiria os sindicatos no grupo.
“A gente está diante de um governo ou de uma situação em que Vargas precisava ter mais apoio diante das forças que estão ali no governo”, diz Maria do Socorro.
“Quanto maior o número de pessoas envolvidas nas eleições, mais sinalizava, especialmente para a oposição da época, o quanto aquele grupo que estava no poder tinha esse apoio da população.”
Dados da época indicam que, ao final, o número de eleitores alistados em 1933 foi menor do que nas últimas eleições da Primeira República, em 1930. Já o comparecimento às urnas foi maior: 84% do 1,5 milhão de eleitores foram votar em maio de 1933.
Em 2018, no primeiro turno das últimas eleições presidenciais, a taxa de abstenção atingiu o valor de 20,3%, o maior índice desde 1998. Ao todo, pouco mais de 117 milhões de eleitores foram às urnas.