Governo Bolsonaro exclui populações vulneráveis da prevenção à aids
Foto: Romildo de Jesus/Futura
O Ministério da Saúde investiu somente R$ 100.098 em campanhas de prevenção do HIV em 2021. O valor equivale a 0,6% do total aplicado mais de 20 anos atrás, em 1998, dado mais antigo disponível. À época, o investimento foi de R$ 16,5 milhões (atualizados pela inflação).
Considerados os últimos três governos, o valor destinado a campanhas contra a aids chegou ao ápice em 2018, na gestão Temer, com R$ 22 milhões, pouco acima dos gastos do governo Dilma Rousseff em 2015 (R$ 20,1 milhões).
A queda brusca rumo ao investimento ínfimo do último ano, porém, se deu já no começo do governo Bolsonaro. Em 2019, o ministério da Saúde destinou R$ 14,8 milhões, recursos em grande parte empenhados ainda na gestão anterior.
Em 2020, primeiro ano de Orçamento da União proposto pela gestão bolsonarista, o tombo foi ainda maior: R$ 3,9 milhões foram dedicados à propaganda oficial contra o HIV, quatro vezes menos que em 2019.
Os valores de 2015 a 21 foram calculados a partir de faturas pagas a agências de publicidade e veículos de comunicação, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (demanda 4452351 formulada ao Ministério da Saúde), aos quais o blog teve acesso.
O valor gasto em 1998 consta do site da pasta, mas não há dados públicos disponíveis para os demais anos, de 1999 a 2014.
Na mensagem de resposta à LAI, o Ministério da Saúde atribuiu o baixo investimento entre 2020 e 21 à pandemia de covid, o que limitou a veiculação de campanhas de prevenção “apenas na data de primeiro de dezembro” (Dia Mundial de Luta Contra a Aids) no último ano.
Além da diminuição do financiamento, documentos mostram que o governo Bolsonaro promoveu o “cancelamento”, excluiu das campanhas de prevenção algumas das populações mais vulneráveis à epidemia da aids.
Até então frequentes, foram descartadas ações educativas e antidiscriminatórias direcionadas a profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens, jovens gays e pessoas trans (travestis, homens e mulheres transexuais).
A exclusão fica nítida nos briefings do ministério que serviram de base para a elaboração das campanhas pelas agências de publicidade contratadas pelo governo, que também constam da LAI.
Em 2020 e 2021, os briefings mencionam apenas população em geral, homens jovens, mulheres durante o pré-natal, gestores e profissionais de saúde.
Embora sejam públicos relevantes, que também precisam ser alcançados por mensagens de prevenção, não há nenhuma justificativa técnica ou epidemiológica para a exclusão dos demais.
Antes do governo Bolsonaro, eram previstas, por meio de publicidade centralizada no Ministério da Saúde, ações em mídias segmentadas para alcançar populações mais vulneráveis, explicitadas nos briefings, sempre destacando o tom “positivo e não discriminatório” a ser seguido nas mensagens e peças.
A mudança sinaliza influência ideológica na gestão do ministério, a exemplo do que a CPI da Covid apontou em seu relatório final sobre a disseminação do tratamento precoce no combate à pandemia.
Por que campanhas dirigidas são importantes?
No Brasil, enquanto a prevalência do HIV na população como um todo estabilizou ou caiu, a epidemia manteve-se concentrada em patamares elevados ou mesmo aumentou em alguns segmentos populacionais.
Conforme recomendações técnico-científicas internacionais, os programas de HIV devem contemplar as “populações-chave”, denominação da Organização Mundial da Saúde para aquelas comunidades que requerem campanhas de prevenção dirigidas e intensificadas.
O Departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde, antes de 2019, seguia estritamente diretrizes científicas na definição de públicos-alvos.
Partia-se do princípio de que o HIV pode afetar qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual por exemplo.
Acertadamente, após 1993, as campanhas federais pararam de atribuir a culpa e o risco de infecção pelo HIV a grupos ou comportamentos. Foi, assim, eliminada a noção de “grupos de risco” do início da epidemia.
Dentre os avanços da resposta à aids no Brasil, hoje uma pessoa com HIV em tratamento antirretroviral adequado, disponível no SUS, não transmite o vírus.
Trata-se, então, de dotar os indivíduos de conhecimentos que lhes permitam acessar a melhor prevenção adaptada às suas escolhas e contextos.
Isso inclui ofertar desde preservativos e testes rápidos até medicamentos usados por pessoas HIV-negativas antes ou depois do risco de se infectar. É a chamada “prevenção combinada”.
A regra deveria ser a execução de campanhas dirigidas, com linguagem adequada a cada público, que combinem mensagens claras de prevenção com a promoção dos direitos humanos das pessoas mais afetadas pela aids.
Em 2001, o ministério da Saúde veiculou campanha histórica em horário nobre da TV aberta. Nela, pai e mãe acolhiam o filho homossexual e conversavam normalmente sobre o namorado do jovem. O filme aconselhava o uso da camisinha e trazia mensagem clara de aceitação e tolerância.
A mesma lógica de campanhas direcionadas e inclusivas se repetiu por duas décadas.
Vozes conservadoras, incluindo parlamentares da bancada evangélica, volta e meia tentavam impedir campanhas sobre HIV que abordassem a sexualidade e defendessem os direitos de cidadania das populações vulneráveis. A pressão sobre o governo de Dilma Roussef resultou, em 2012, na suspensão de peças voltadas a jovens gays e profissionais do sexo.
Independentemente do titular à frente da pasta, o Ministério da Saúde adotou nos últimos três anos a tática da “fraternidade reacionária”, que consiste em censurar previamente tudo aquilo relacionado à sexualidade e questões de gênero que possa desagradar Bolsonaro e sua base fundamentalista. Foi por isso que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta vetou cartilha de prevenção voltada a homens trans.
Quando era deputado federal, Bolsonaro chegou a afirmar que “quem não se cuidou, se pegar a doença é problema dele”, referindo-se a quem vive com HIV. Em 2020, já presidente, voltaria a dizer que pessoas soropositivas são “uma despesa para todos no Brasil”.
Mais uma vez, o Brasil está na contramão mundial. A pandemia da covid prejudicou a prevenção e a assistência de outras doenças. O funcionamento dos serviços de aids também foi afetado, menos testes de HIV foram realizados, tratamentos deixaram de ser iniciados, e houve queda na distribuição de preservativos e medicamentos usados na prevenção.
O que outros países fizeram foi investir ainda mais recursos na prevenção do HIV, em ações dirigidas a públicos mais susceptíveis, com maior apoio às ONGs que têm trabalhos comunitários, mais campanhas em redes sociais, aplicativos de encontros, eventos e locais de lazer reabertos.
Eleito com bandeiras extremistas, Bolsonaro não conseguiu aprovar no Congresso Nacional a pauta de costumes que prometeu à sua base, como o estatuto da família, que exclui casais homoafetivos.
Restou ao governo agir pelas beiradas, por dentro dos ministérios. O mesmo sectarismo que custou a vida de centenas de milhares de mortes por covid que poderiam ter sido evitadas pode arruinar o progresso obtido em décadas anteriores na prevenção da aids no País.
Sem campanhas de prevenção dirigidas, o Brasil se aproxima do ponto crítico para uma nova onda de infecções por HIV.