Órgão que fiscaliza planos de saúde foi abandonado pelo governo

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Foto: Gabriel Monteiro/Agência O Globo

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão responsável por fiscalizar o setor de planos de saúde no País, funciona há quase dois anos com diretores substitutos mantidos no cargo acima do prazo legal. O arranjo garantiu ao atual presidente da agência, Paulo Rebello, acumular superpoderes. Advogado e ex-chefe de gabinete do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), Rebello controla hoje, além da própria presidência, duas das mais importantes diretorias da ANS.

Ambas responsáveis por processos como a venda bilionária da carteira de planos individuais da Amil, que atingem milhares de clientes. Rebello é hoje o único diretor titular. Outras três diretorias são ocupadas há quase dois anos pelos mesmos três servidores.

A legislação das agências reguladoras estabelece, contudo, limite de 180 dias para a permanência de um servidor como diretor substituto. A área jurídica da ANS produziu um parecer para abonar a violação dessa trava. A interpretação é contestada pelo Sinagências, entidade que representa os servidores de carreira dos órgãos reguladores.

Apelidada de “escravos de Jó”, uma referência à conhecida brincadeira de criança, a manobra consiste em, a cada 180 dias, alterar os nomes dos ex-diretores que esses servidores estão substituindo como se estivessem sempre numa nova suplência.

Trata-se de uma mera formalidade. Nesse jogo os servidores não mudam de posto na direção, e o que muda é o nome do ex-diretor que cada servidor está substituindo.

Em dezembro, o Senado aprovou dois nomes para diretoria da ANS. O presidente Jair Bolsonaro, contudo, ainda não os nomeou. Com isso, permite que a agência siga comandada por servidores substitutos e mantém a concentração de poder nas mãos do atual presidente do órgão.

A ANS tem cinco diretorias, além do cargo de diretor-presidente. Pelas regras, o chefe da agência acumulava o cargo com a Diretoria de Gestão (Diges), ligada à administração interna. Mas uma mudança no regimento interno feita dois dias após Paulo Rebello assumir o comando da ANS permitiu que ele trocasse o cargo burocrático pelo comando das duas diretorias mais poderosas do órgão regulador – Normas e Habilitação das Operadoras (Diope) e a outra, a de Normas e Habilitação dos Produtos (Dipro).

O País tem hoje dez agências reguladoras, incluindo a ANS. De acordo com os portais de cada órgão, em nenhuma delas o diretor-presidente ocupa outra diretoria além da sua própria.

Em geral, as agências reguladoras são comandadas por conselheiros ou diretores que não detêm controle sobre áreas técnicas específicas. A ANS tem uma particularidade: cada diretor cuida de temas, como a diretoria que trata da habilitação de operadoras de planos de saúde, sob o comando do atual presidente da agência. Uma concentração de poder numa pessoa. É a ANS, por exemplo, que define reajuste de planos de saúde e multa operadoras por maus serviços.

Cobiça
Os cargos na cúpula da ANS são alvo de disputa política. Um dos motivos é que os parlamentares se interessam em ter alguém de sua confiança no comando de órgãos responsáveis por decisões impactantes e que envolvem cifras bilionárias.

Entre o fim de 2020 e dezembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (PL) encaminhou 12 indicações ao Senado para compor a diretoria da ANS. Por pressão de senadores que apoiam seu governo, nomes entraram e saíram da lista nesse meio tempo.

O atual presidente Paulo Rebello é um exemplo. O nome dele foi retirado em 6 de julho do ano passado no rastro das acusações de que o deputado Ricardo Barros estaria envolvido em um esquema de compra de vacinas para covid-19, feitas à CPI da Covid. No dia seguinte, porém, Bolsonaro recuou e mandou o nome de Rebello novamente. O deputado Barros nega o vínculo.

Das 12 tentativas de preencher as vagas na ANS, o atual governo nomeou apenas dois diretores-presidentes em sequência. Outros dois indicados foram aprovados pelo Senado, mas não foram nomeados por Bolsonaro. E dois nomes para diretoria aguardam análise dos senadores há quase três meses.

Nomeados
Em dezembro, o Senado aprovou os nomes da defensora pública estadual aposentada Eliane de Castro Medeiros e do diretor substituto de fiscalização da ANS, Mauricio Nunes da Silva, para assumir mandatos de cinco anos. Ela seria indicação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); ele, de Barros. Os dois negam o apadrinhamento.

A defensora pública disse que soube da vaga na direção da ANS “no boca a boca de amigos, e mandei currículo”, disse ao Estadão. “Eu busco uma adrenalina. Como eu não tenho coragem de pular de paraquedas, fazer viagem de cruzeiro, a minha adrenalina é me habilitar para alguns projetos.” Nome também aprovado pelo Senado em dezembro, Mauricio Nunes é diretor substituto desde maio de 2020.

Em nota, a ANS sustenta que o rodízio entre os integrantes da lista de substituição é determinado pela lei, “a qual também estabelece a impossibilidade de o mesmo diretor-substituto ocupar o mesmo cargo por um período de 180 dias”.

Burla
Para o economista Arthur Barrionuevo Filho, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) nas áreas de concorrência e regulação, ter uma diretoria formada por substitutos no comando de uma agência reguladora, por tanto tempo, “burla o espírito da legislação, que era evitar que a mesma pessoa fique indefinidamente ocupando espaço na diretoria sem ter sido nomeada para tal”.

Ele afirma ainda que o mandato da diretoria foi criado para garantir liberdade para decidir contra ou a favor de quaisquer interesses. “Quando você pega alguém que é provisório, esse alguém não tem essa garantia. Ele tem uma garantia provisória. Isso pode tornar essas pessoas mais suscetíveis a pressões.”

Agência afirma ter respaldo em ‘interpretação da lei’
Para validar a permanência de diretores substitutos no comando da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) por quase dois anos, a direção do órgão regulador recorreu a um parecer da Advocacia Geral da União (AGU). O documento elaborado pela AGU admite que foi preciso buscar uma “interpretação da lei” das agências reguladoras para permitir que o prazo de 180 dias de interinidade fosse estendido.

A regra foi elaborada justamente para impedir que a mesma pessoa fique indefinidamente ocupando o cargo sem que tenha passado por sabatina no Senado e nomeada pelo presidente da República.

Lista
Em nota, a ANS afirmou que “segue estritamente o que determina a legislação no processo de nomeação e substituição da diretoria”. “Os servidores que integram a atual lista de substituição da diretoria colegiada são altamente capacitados e foram designados para os cargos vagos pelo Presidente, atuando, tanto quanto um Diretor ‘titular’ nos processos submetidos à Diretoria Colegiada e observando todos os processos estabelecidos pelo regimento interno da agência e pelos normativos legais vigentes. Todos os trabalhos da agência vêm sendo desenvolvidos normalmente, sem prejuízo ao funcionamento da reguladora.”

O parecer da AGU foi encomendado em setembro de 2020, próximo ao fim dos primeiros seis meses de interinidade de um dos servidores substitutos. “Embora a situação não tenha sido prevista expressamente pelo legislador, é preciso buscar uma interpretação que assegure a maior efetividade à continuidade do serviço público e à capacidade decisória da agência, desde que a interpretação se mantenha dentro dos limites do texto legal”, justificou a AGU.

No entendimento dela, “o legislador não tratou expressamente da situação quando um substituto atingir o prazo máximo de 180 dias de substituição do cargo e os demais integrantes da lista já estejam exercendo a substituição em decorrência da vacância de outros dois cargos.” O que deu margem para a interpretação.

O parecer da AGU que vem sendo usado pela ANS para manter no cargo os diretores substitutos inclui duas tabelas que deixam claro o troca-troca na lista de substituição forjada pela agência. As tabelas indicam, por exemplo, que o servidor Bruno Martins foi convocado em 17 de março de 2020 para assumir o posto de diretor com a saída do ex-diretor Leandro Fonseca. Em 14 de setembro de 2020, seis meses depois, o mesmo Bruno aparece como substituto de outro diretor que também tinha deixado a ANS.

O Sinagências (sindicatos dos servidores das agencias) questionou a interpretação da lei. “O descaso pela lei tem permitido graves irregularidades e ilegalidades.” A entidade afirmou que a manobra “fere o princípio basilar das agências nacionais de regulação: a independência técnica, financeira e política, devendo suas diretorias serem constituídas de forma colegiada, com mandatos fixos e não coincidentes”. “A cada nova vacância ou a cada ciclo de 180 dias de interinidade, nova lista de substituição deveria ser enviada para designação do Presidente, excluindo da lista aquele que já exerceu a interinidade, adicionando um novo servidor substituto a ela.” Procuradas, a Presidência e a Casa Civil não se manifestaram.

Estadão