Cidadãs negras têm menos acesso a delegacias da mulher
Foto: Bruno Santos-8.mar.2022/Folhapress
Homicídios de mulheres diminuem em municípios com delegacias da mulher, mas os de negras só apresentam redução nas cidades metropolitanas com infraestrutura urbana e níveis elevados de escolaridade feminina.
É o que mostra o artigo “Structural Advocacy Organizations and Intersectional Outcomes: Effects of Women’s Police Stations on Female Homicides”, de Anita M. McGahan (Universidade de Toronto), Paulo Arvate (FGV-SP), Paulo Ricardo Reis (UFRJ) e Sandro Cabral (Insper), a ser publicado no periódico Public Administration Review.
Eles sugerem políticas públicas (em educação, transporte público, segurança) para tratar complementarmente gênero e raça para que as delegacias tenham o efeito desejado também para a população negra.
“Tudo indica que as mulheres brancas utilizam mais as delegacias da mulher por serem mais instruídas. Quando as mulheres negras têm mais instrução o resultado começa a aparecer”, diz Arvate ao Painel. “Essas mulheres brancas parecem ser mais conscientes dos seus direitos, elas conseguem acessar o serviço disponível”, complementa Cabral.
Um dos achados da pesquisa, explica o professor do Insper, é o de que a chance de morrer de uma mulher negra que mora em uma cidade com altos índices educacionais cai de 4,7% a 8% com uma delegacia da mulher, ao passo que para uma branca o efeito de redução oscila entre 22% e 25%.
O efeito médio de redução de homicídios de mulheres é de 10% a 13% na comparação com cidades sem delegacias da mulher, mas concentrado nas brancas.
Os pesquisadores apontam as condições de infraestrutura também são cruciais para viabilizar o acesso às delegacias da mulher.
“Além de ter consciência dos direitos, a mulher precisa ter condições de formalizar a demanda, tanto em termos de transporte para ir à delegacia como de telecomunicações. Em regiões em que os índices de infraestrutura são menos desenvolvidos, diminuem as chances de fazer as denúncias e de a investigação avançar”, afirma Sandro Cabral.
“As regiões metropolitanas tendem a concentrar um conjunto de outros equipamentos que também fazem parte das políticas públicas de maneira complementar”, diz Reis.
Em cidades com infraestrutura precária, as delegacias da mulher não geram mudanças relevantes nos indicadores, mostra o artigo.
Eles afirmam que o levantamento mostra que as delegacias da mulher estão entre as instituições que têm mais influência no combate à violência contra a mulher, por ter representatividade (ou seja, há um número significativo de mulheres trabalhando nelas) e mandato (têm rotinas e procedimentos para tratar das questões específicas).
No caso das mulheres negras, Cabral aponta que é provável que a representatividade racial não seja a que se espera que exista nas delegacias da mulher e que as rotinas e procedimentos devam ser adaptados para essa parcela da população com suas demandas, dificuldades e necessidades particulares.
O que dificulta um cenário mais claro para sustentar esse diagnóstico, dizem os professores, é a dificuldade no acesso a dados como raça e gênero de funcionários das delegacias da mulher pelo Brasil.
Eles não conseguiram ter acesso a dados como a proporção de homens e mulheres trabalhando nas delegacias da mulher nem a de brancos/brancas e negros/negras em grande parte dos municípios, sob o argumento de secretarias de Segurança de que fornecer essas informações colocaria em risco estratégias das polícias.
Para Cabral, há algumas medidas claras a serem tomadas pelos formuladores e implementadores de políticas públicas diante das descobertas do estudo.
“A primeira coisa é um mandato claro: a violência contra a mulher negra importa. Ela tem características específicas. O segundo passo é ter representatividade nas posições. Delegadas e agentes negras. E isso vai fazer com que os procedimentos e o acolhimento sejam mais customizados para essas mulheres que são vítimas preferenciais da violência”, afirma.
Arvate pontua que, para além dessas medidas do lado da oferta, a demanda também deve ser contemplada.
“Se você aumentar a escolaridade das mulheres negras você vai ajudar bastante também nesse processo. A polícia não está solta na sociedade. Ela está dentro de um emaranhado. Se você olhar Colômbia, Chicago, você percebe que os resultados surgem quando são feitas políticas conjuntas. Se fizer política só de polícia não chega a lugar algum. Precisamos de uma polícia específica, com determinadas características, mas também investir em outras políticas sociais, como na educação”, afirma.
Reis afirma que algumas das políticas públicas já existem, como as cotas raciais no serviço público e no ensino superior, mas elas tem implantação heterogênea em diferentes regiões e os resultados surgem apenas no médio e no longo prazo.
Para testar as hipóteses, a pesquisa realizou 22.254 observações quantitativas de dados de municípios brasileiros sobre homicídios relativos ao período de 2004 a 2018.