Grupo faz oração na rua contra o aborto
Foto: Mateus Araújo/UOL
A buzina frenética de um carro invadindo pela contramão uma das faixas da avenida Brigadeiro Luís Antônio, região central de São Paulo, pegou todo mundo de surpresa. Perto do meio-dia, muita gente caminhava por aquelas bandas. Dois rapazes que tentavam atravessar na faixa de pedestres voltaram às pressas para a calçada, para abrir caminho ao veículo atordoado. Era uma urgência: “Me ajude, me ajude”, gritava uma voz de dentro do veículo. Ela socorria uma idosa, deitada no banco de trás, com um ataque cardíaco.
A motorista parou o carro enviesado entre duas vagas do estacionamento do Hospital Pérola Byington. Uma enfermeira foi chamada às pressas e corria para ajudar no atendimento. Por cerca de 10 minutos, a atenção de quem estava no entorno ficou presa àquela cena.
Na praça em frente, um grupo de quatro pessoas rezava um rosário em latim. “Livrai-nos da maldição do aborto no Brasil e no mundo inteiro”, repetiam. Sentado entre eles, em um banco de plástico, um padre vestindo batina lilás que puxava, indiferente, um Ave-Maria. As duas mulheres e um rapaz ao seu lado desviavam o olhar para a movimentação no hospital. Mas o imprevisto não atrapalhava a prece em prol da vida, como dava para se ver nos cartazes pregados numa tenda onde estavam todos.
Aquele era o início do 15º dia de uma vigília na porta da unidade de saúde que é referência em atendimento a vítimas de abuso sexual e no serviço de interrupção de gravidez em casos permitidos pela lei. No Brasil, o aborto é permitido a mulheres com risco de morte ou vítimas de estupro, e, ainda, em quadros de anencefalia fetal.
Desde 2 março, a campanha “40 Dias Pela Vida” faz uma sentinela na porta do Pérola Byington. Numa tenda armada diariamente, das 10h às 18h, cristãos — de maioria católica — se revezam no plantão de rezas, mobilizando de cinco a 30 participantes, dependendo do dia. Eles defendem que a vida surge no ato da concepção.
Esse movimento de vigília antiaborto começou em 2004, nos Estados Unidos, e saiu em cruzada pelo mundo a partir de 2007. Segundo os seus organizadores, já chegou a mil cidades de 63 países. No Brasil, esta é a quarta edição. Em São Paulo, especificamente, a manifestação ocorre sempre naquele mesmo local. Além da capital paulista, o grupo divulga ações semelhantes em Brasília, Campina Grande, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e no Rio de Janeiro.
Liham Oliveira, 23, é quem coordena o posto de oração da Brigadeiro Luís Antônio. Morador de Barueri, na região metropolitana, foi o primeiro a chegar naquela manhã, antes mesmo das 10h, para montar a estrutura móvel. Em cima de uma mesa de plástico forrada com uma toalha quadriculada, colocou as imagens de Nossa Senhora do Bom Conselho e de Santa Rita ao lado de réplicas de fetos feitas com bonecos de gesso. Na estrutura da tenda que os protege do sol e da chuva, Liham pregou banners com as frases “Sorria, a sua mãe escolheu pela vida” e “Lute pelas duas vidas”. No pescoço, destoando do estilo formal do terno que usava, o rapaz pôs uma placa em que se lia “Rezando pelo fim do aborto”.
“A igreja é contrária ao aborto, tanto que pune com excomunhão automática quem realiza esse ato. Todo fiel católico é contra o aborto”, frisava ele, em conversa com o TAB. Ex-estudante de Teologia e de Filosofia e integrante de um postulado conservador responsável por organizar terços em espaços públicos de São Paulo, Oliveira conta que estão ali para “ensinar que o aborto é errado e que há meios de evitar que ele aconteça”.
“[Fazemos isso] instruindo a mulher que o aborto não é opção, dando meios para que ela continue a gravidez — mesmo que indesejada ou por estupro”, afirma. “Ensinamos que o aborto nunca é um caminho, que ela pode deixar o bebê para adoção ou que pode ser acompanha e assistida nas suas necessidades espirituais, temporais ou com dinheiro mesmo. A vida sempre deve ser preservada, a vida é sagrada”, continua, sem mencionar qualquer aspecto da dor física ou psicossocial das mulheres que procuram atendimento na unidade.
Um fenômeno jurídico e constitucional tem mexido com países da América Latina nos últimos anos, resultando em processos de descriminalização do aborto. É o caso da Argentina e do México, em 2021, que se somaram a Cuba, Uruguai e Guiana. Mais recentemente, em fevereiro, a Suprema Corte da Colômbia descriminalizou a interrupção de gravidez até a 24ª semana de gestação. Casos que estão ligados sobretudo à mobilização feminista pelo direito de escolha, conhecida como “maré verde”.
Para o coordenador da campanha “40 Dias Pela Vida em São Paulo”, no entanto, o aborto é assunto intolerável. “A gente não discute se vai matar ou não aquele bebê”, reclama.
Embora se anuncie “pacífica”, a campanha cristã causa incômodo a muitas pessoas. Sobretudo a mulheres. Em 2020, uma paciente do hospital chegou a reclamar diretamente ao grupo pelo constrangimento ao qual ela, vítima de estupro, passava com aquela ação ali na porta da unidade de saúde. A situação foi parar na delegacia. O motivo: a mulher contou que foi xingada e agredida fisicamente por integrantes do movimento; eles, porém, contradisseram a versão.
“A oração não constrange ninguém. É uma súplica a Deus pelo fim do aborto Brasil e no mundo inteiro”, retrucava Liham Oliveira. “Dizer que oração é ato que constrange pode ser, sim, vilipêndio à fé.” Ao longo dos 15 primeiros dias da ação, ele conta que já ouviu insultos e resmungos. “Tem profissional do próprio hospital que é contra, que nos insulta. Uma funcionária, no primeiro dia, fez gestos de insulto à nossa oração.”
Do outro lado da avenida, uma enfermeira de saída do plantão comentava que a vigília “é insignificante”. “Pode até chamar atenção de quem passa na rua, mas não vai impedir que mulheres violentadas façam o aborto com respaldo da lei.” Recém-formada, a jovem, que não quis se identificar, cursa uma especialização em saúde da mulher e defende a atuação do Pérola Byington no amparo às vítimas de violência. “Aborto é uma questão de saúde pública. São meninas e mulheres traumatizadas com a violência sofrida. Não há tempo para julgá-las.
” Há dias em que o hospital chega a receber até dez casos de mulheres em busca do serviço de interrupção da gravidez, contava uma técnica de enfermagem, que também pediu para não ter o nome citado. “Eles têm a liberdade de manifestar a opinião do outro lado da rua, e elas têm direito de decidir”, opinava. “Não sou a favor de um aborto. Por mais que se fale em doação de crianças, por mais que uma criança não tenha culpa da violência que a mãe sofreu, essa mulher pode não querer ter a lembrança de uma coisa ruim que viveu.”
Passava do meio-dia, quando o padre — que não quis dar entrevista (“eu não quero falar”, disse pausada e enfaticamente) — foi embora. No posto, ficaram apenas Oliveira e uma mulher, que aproveitou para descansar um pouco. Estava sentada à sombra de uma árvore, próxima à barraca onde pessoas em situação de rua estão vivendo. “A gente vai continuar a oração depois”, explicava ela, com um terço enrolado no punho.
Bailarina e professora de dança, Maria Moema Guimarães, 45, frequenta a vigília desde a primeira edição. Diz que se engajou ao apelo antiaborto depois de ouvir relatos de mães que perderam seus filhos de forma natural e sofriam “a dor da perda”. Eram alunas que partilhavam o sofrimento através da arte. “Na dança, essa potência aparece. Até a coragem aparece também para enfrentar tudo isso”, dizia.
“A minha bisavó perdeu a filha dela, de 21 anos, na gripe espanhola, e nunca sarou dessa dor. Imagine o tamanho da dor que está nos ombros de uma pessoa que fez um aborto?”, comparava. Mãe de dois filhos (um de 20 anos e outro 23), a bailarina explicava que estar ali, na vigília, é uma forma de conscientizar as pessoas e, eventualmente, acolhê-las. Mas não especifica qual seria o teor ou as medidas práticas de acolhimento.
Questionada sobre a presença de homens à frente do movimento e na vigília, Guimarães argumentou: “Realmente, essa é uma luta das mulheres. As mulheres precisam ser ouvidas, precisam ser acolhidas pelas outras mulheres, mas isso não significa que os homens não podem nos ajudar. Agora você me ouvindo, me sinto acolhida”.
Foi a deixa para Liham Oliveira, ao ouvir a resposta da colega, voltar a intervir. “As pessoas dizem que homens não podem falar disso porque não engravidam. Então as mulheres não podem falar porque elas não são os bebês”, cortava. “Você reduz uma discussão que é para todo mundo a um grupo seleto. Isso é tolice. Essas narrativas que o mundo moderno cria para dividir são tolices. O debate do aborto não envolve só mulheres. Se uma mulher é casada, o marido não tem o direito de ter o filho?”
Nesse momento, a bailarina silenciou. Uma outra mulher que acompanhava a vigília mais afastada, porque, segundo ela, é evangélica (“mas concordo com o movimento”, explicava), abordou a dupla. Aguardava os dois para almoçar. Era o final do primeiro expediente daquele dia de vigília.